Saio à rua com o meu patudo Johni e socializo com seis ou sete pessoas, falamos dos hábitos dos nossos companheiros e daí podem desenrolar-se relações edificantes. Porém, se no dia seguinte vou às compras sozinho, torno-me um anónimo desconhecido e as sociabilidades ficam esvaziadas. Sabe-se que a relação dos humanos com os cães dura há milhares de anos, mas não há a certeza se esse processo de evolução derivou de uma segmentação entre esses caninos candidatos a futuros lobos que, por necessidade de sobrevivência, se aproximaram dos humanos, trocando a guerra pela oferta de restos de comida, ou se foram os humanos que, ao domesticarem animais (para trabalho e alimento) precisaram de instrumentalizar os cachorros para sua proteção ou, por exemplo, para ajuda na caça e pastoreio do gado.
Num interessante e controverso registo filosófico, Donna Haraway — a filósofa, zoóloga e cientista social feminista, autora de Simians, Cyborgs and Women: The reinvention of nature (1991), e de O Manifesto das Espécies Companheiras (2021) — coloca a hipótese de um longo processo, competitivo e dinâmico, na evolução biotecnológica da vida na Terra, no qual, “o Homem agarrou o lobo (livre) e transformou-o num cachorro (servo), tornando, assim, a civilização possível”. Ou seja, historicamente, as relações interespécies obedecem aos ditames de múltiplas combinações entre a genética das espécies na sua interpenetração com micro-organismos e influências diversas nos biomas humanos e ambientais. Na citada obra, a autora argumenta que “os modos de vida humanos foram transformados consideravelmente pela sua associação com outras espécies, nomeadamente cachorros. Flexibilidade e oportunismo foram as cartas do jogo para ambas as espécies, que se moldaram uma à outra ao longo da sua continuada história de coevolução” (op. cit.). Uma história em que “o relacionamento é multiforme, perigoso, não determinado e permeado de consequências”. A interconexão dos humanos com as outras espécies, nomeadamente os cães, evoluiu segundo um imbricado processo vinculado aos impactos sociais das invenções técnicas.
O que parece ser factual é que nessa milenar metamorfose do nosso planeta, onde milagre e tragédia caminham juntos, a recriação de novas formas de vida foi uma luta constante de recombinações geobiológicas entre a genética, a cultura e a tecnologia, desde a invenção do arado aos atuais computadores, robots e smartphones. Para onde caminha a humanidade, não se sabe — para a catástrofe ou para um novo reequilíbrio —, mas o crescente impacto da técnica na vida social está a impor novas conceções e classificações, onde as velhas dicotomias rígidas dão lugar a modalidades híbridas e fluidas de vida e de identidade, tais como homem/mulher, natureza/cultura, biologia/ tecnologia, espaço físico/ espaço digital, etc., oferecendo novas possibilidades no que respeita à mudança identitária, à transformação do corpo, aumentando a complexidade e abrindo caminho a novas promessas emancipatórias, ambientalistas, etc., ou seja, suscitando novas disputas de cariz político e sociocultural. A reconceptualização em torno dessas divisões obriga-nos a repensar a sobrevivência da espécie humana a partir da nossa relação, por um lado, com a tecnologia/cibernética/dimensão digital e algorítmica e, por outro, com a natureza e o mundo interespécies. Entre o meio ambiente e a biologia (vegetal, humana ou animal), não existe propriamente uma oposição, pois na verdade o dentro e o fora dos sistema celulares obedece a uma transação marcada pela permeabilidade, num processo invasivo e dialético, onde a vida é recriada a partir da morte e renascimento dos múltiplos compósitos de DNA, segundo um movimento coevolutivo que se mantém latente no subconsciente das sociedades. Por isso, a citada autora se interroga, com fina ironia: “Hegel e Freud foram viralizados no canil?”
Relações interespécies e em particular as chamadas espécies companheiras contêm implicações muito mais abrangentes do que a nossa ligação pessoal e afetiva com os nossos pets, caninos ou felinos. Mas este longo processo de domesticação e coevolução com os animais não é, nem historicamente nem na atualidade, um processo linear ou onde a relação com “o fiel amigo” seja apenas sinónimo de fofura e sentimentalismo. Essa é uma ficção de alguns cuidadores que os tomam como adornos das suas vaidades e frustrações afetivas. Refletir sobre a nossa relação com as “espécies companheiras” tem implicações decisivas quer para a compreensão da natureza humana quer para perspetivar o nosso futuro comum no mundo que nos rodeia e nos molda, que é interespécies, intertecnológico e interdigital. É claro que a coevolução também envolve outras espécies vivas no campo da fauna e da flora, onde as metamorfoses genética e sexual estão presentes. No entanto, é um erro pensar-se que, por exemplo, as mutações do corpo dos animais são de ordem biológica enquanto as que ocorrem entre os humanos são de ordem cultural. Os processos coevolutivos são engendrados na estreita interdependência entre humanos e espécies companheiras onde o biológico, o tecnológico e o cultural se confundem
Para além do evolucionismo histórico de longa duração, também no quadro da modernidade os impactos do desenvolvimento tecnológico ganharam uma força determinante na formatação dos padrões de vida em sociedade, onde inclusive a espécie canina também tomou parte. O desenvolvimento tecnocientífico e a manipulação genética ganharam uma nova aceleração com a Revolução Industrial, o que estimulou também os processos seletivos nos cruzamentos raciais do mundo animal a par da própria competição mercantilista na economia. Falando de raças caninas, por exemplo, o caso do bulldog francês (por sinal, a que me é mais familiar), foi por assim dizer resultado da expansão do maquinismo na Inglaterra vitoriana. Ao empurrar para a França de finais do século XIX um exército de mão-de-obra desempregada, criou as condições não só para a industrialização do país de destino mas também para a primeira incubadora dos pequenos bulldogs, que a sociedade inglesa terá inicialmente rejeitado, mas que a França e os EUA popularizaram, num processo, aliás, que parece ter partido da classe trabalhadora para alcançar as classes médias e elites aristocráticas.
Vivemos juntos, pessoas, animais e plantas, num planeta ameaçado, e a sua possível salvação requer a urgente reinvenção do relacionamento recíproco entre as espécies. Sociedades futuras — caso resistam às atuais tendências autodestrutivas —, para recuperar o equilíbrio perdido, terão de promover um novo reencontro ecuménico interespécies. Dir-se-á que a função que os cachorros cumprem no espaço público é a de agregadores, no sentido em que contribuem para conter ou fazer regredir uma tendência que a modernidade vem acentuando: o crescente deslaçamento da sociedade. Para além de espoletarem o que há de melhor no ser humano, ajudando a soltar os afetos, expondo-os nos sorrisos e carícias aos animais, proporcionam que as interações entre as pessoas obedeçam a princípios idênticos, isto é, a comunicação desenrola-se sob o signo da empatia, desligando os alertas defensivos que noutras circunstâncias filtram as relações empáticas e a partilha espontânea.
