Há uma pergunta recorrente sobre o papel da cultura no contexto da guerra actual, da pós-pandemia e do crescimento da democracia iliberal.
Que podem fazer os sistemas culturais? A pergunta enferma de uma visão milenarista assente na ideia de que o passado foi sempre melhor do que o presente e de que, por sua vez, precede um futuro que pode ser catastrofista ou apocalíptico ou, pelo contrário, salvo por alguma forma de messianismo.
A oposição entre o mito e a história pode ajudar a desconstruir este pensamento porque também ajuda a desconstruir a mitologia passadista através de factos históricos. E, claro, a desconstrução das falácias e dos dogmas é imperativo. E que respostas tem o subsistema cultural das artes? Que respostas apresenta, mesmo ressalvando a sua própria autonomia? Poderá fazer pouco, mas ainda assim ser preferível a não fazer nada, e manter o que é, a meu ver, o estado de negação da maioria da produção artística em Portugal; nos últimos anos um desalento.
Voltando à questão inicial, é fundamental o alerta de cautela ao enfrentar três dilemas: a tecnologia pós-revolução científica, a viragem para uma civilização ecológica e a devolução das obras de arte e de culto como conclusão de um processo de descolonização global.
Estamos a milénios de distância da invenção da enxada que permitiu trabalhar a terra, produzir alimentos e cultivar. Era uma tecnologia que o Homem dominava e instrumentalizava e cuja utilização podia partilhar com outros homens.
No presente, lidamos com outras tecnologias, já não radicadas na techne ao serviço do homem, mas que se transformam em entidades globais, linguagem e instrumentos de controlo de poderes difusos e incontroláveis, de governos, de fundos de investimento anónimos e cujos comportamentos futuros são, neste momento, indeterminados. É a este propósito que é oportuno evocar Heidegger em Die Frage nach der Tecknik (1940) onde o filósofo apresenta três afirmações sobre a tecnologia: a) a tecnologia não é um instrumento, mas uma maneira de entender o mundo, b) a tecnologia “não é uma atividade humana”, c) a tecnologia é “o maior perigo”. Esta última afirmação, diz o filósofo, só será acautelada se o pensamento que medita se sobrepuser ao pensamento que calcula. O pensamento que calcula é o pensamento que gera a tecnologia e é tão necessário como o pensamento que medita, aliás, é o coração do pensamento que calcula, mas é o pensamento que medita que assegura o pensamento da razão da existência humana.
Para nós, faz todo o sentido que a inteligência artificial (IA) se enquadre no pensamento que calcula. E, sendo assim, trará apenas benefícios ou será uma ameaça para a sobrevivência da humanidade?
A mais recente expressão da crença no progresso que a IA trará radica na utopia tecnológica, na utilização e prática da IA (ChatGPT ou Midjourney). Mas sejamos claros: nem os mais indefectíveis defensores a consideram hoje controlável, ou em vias de que tal venha a acontecer.
Sobre o dilema da ecologia, que ultrapassa a questão ambiental, recorro aos trabalhos de Norbert Elias, de Viriato Soromenho-Marques e Bruno Latour convergentes na visão de que desde o século XIX se propagou uma ideologia segundo a qual a natureza se devia submeter aos imperativos tecnológicos, fundamentando assim o extractivismo e uma economia do progresso, que não o da prosperidade, sem nunca colocar em causa, como acontece hoje, a fé despropositada no optimismo tecnológico.
O processo relativo à IA é incontornável e opera a par dos conflitos geossociais (Latour) e de um estado de guerra generalizado, já que não é mais possível fazer a transição para uma sociedade descarbonizada sem assumir conflitos e traçar linhas de demarcação, ainda que as mesmas não sejam absolutamente claras. Poderíamos dizer, como ele, que se trata de um “materialismo ecológico”. Assim, a ecologia, ainda Latour, é a nova luta de classes, ainda que não se reivindique um único sentido para a história e haja múltiplas possibilidades de viver bem. Duas coisas são certas: o sistema de produção capitalista é o principal responsável pela inabitabilidade do planeta que está todo ele numa zona crítica — não se limitando a uma área geográfica específica — e que é o grande impedimento à passagem a uma civilização ecológica.
Por último, o dilema da devolução das obras de arte e de culto, arquivos e restos mortais. Há um longo historial de apropriação de corpos, objetos, obras e arquivos que ultrapassam em muito a ideia da tomada dos despojos das guerras clássicas. Na Europa moderna, a maioria destas obras, agora reclamadas, decorre de situações de apropriação por ocupação violenta do território no momento da expansão. O colonialismo, através dos militares, administradores coloniais, exploradores e missionários, tornou esta prática corrente autolegitimando-a com o argumento de que a posse do território implicava a posse de todos os recursos, pessoas e bens. Assim se alimentavam fetichismos, se demonstrava o poder e se organizava o conhecimento ocidental e um comércio, muito rentável, com que a Europa se ia financiando e exuberando. Contudo, a ideia bastante disseminada de que estas apropriações eram de decisão individual, de intuito meramente comercial ou fetichista tem vindo a ser desmentida pelo trabalho de investigação da historiadora Bénédicte Savoy, que encontrou documentos que provam que a pilhagem fazia parte do programa imperial de colonização dos ex-impérios coloniais com vista ao aniquilamento das identidades culturais e religiosas das comunidades residentes nos territórios ocupados e a sua substituição por práticas culturais sujeitas à propaganda colonial e imperial.
Porque devem então ser estas obras, tal como os arquivos e os restos mortais dos africanos, dos asiáticos, dos povos originários presentes na Europa, devolvidos às nações de origem?
Porque as obras de arte e de culto constituem patrimónios de comunidades e são instrumentos de identidades nacionais e de grupo que foram espoliadas através de uma apropriação indevida e violenta durante o colonialismo e que devem ser devolvidas, constituindo assim parte do processo de descolonização europeia. Com a sua restituição legal, parte substantiva da Humanidade deixará o exílio e regressará a casa. Torna-se assim imperativo rever a noção de património à luz da descolonização e das novas narrativas de origem dos descendentes dos povos colonizados.
O processo de devolução destes objectos aos seus legítimos proprietários é irreversível e um passo determinante para as independências e para a autonomia dos povos que terá como consequências imediatas a alteração da museografia, das narrativas da história de arte e da expansão, a revisão de imaginários locais e globais e a alteração das relações de diplomacia à escala global.
Que estes dilemas tenham pouca relevância no debate em Portugal, mormente nos sistemas culturais, é consequência de uma visão minimalista da democracia; que os mesmos não tenham relevância e praticamente nenhum impacto no subsistema das artes, repito — ressalvando a autonomia da arte — e que raramente estejam inscritos na produção artística contemporânea é não só uma opção periférica, mas uma visão redutora da produção artística e, a meu ver, um sinal de inquietação.