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09-07-2023        Público

Este jornal publicou um artigo do senhor Othmane Bahnini no qual este discorre sobre a autodeterminação de Timor-Leste e o que designa por “Sara marroquino”, procurando acentuar as diferenças entre os dois casos. Diga-se desde já que, à luz da lei internacional, não existe “Sara marroquino”. Se se consultar o site da ONU sobre “territórios não autónomos”, verifica-se que logo à cabeça aparece o “Sahara Ocidental”, que entrou nesta categoria de territórios em 1963 (quando era administrado pela Espanha), e nela permanece.

É certo que a Espanha ensaiou um processo de descolonização desse território, tendo comunicado à ONU em 26 de Fevereiro de 1976 que abdicava do seu estatuto de “potência administrante” – mas essa declaração unilateral não deu lugar nem ao reconhecimento de jure da situação criada (a ocupação do território pelas forças do Reino de Marrocos e da República Islâmica da Mauritânia, que se viria a retirar em 1979), nem à imputação de estatuto de “potência administrante” a qualquer outro país. Pelo contrário: a ONU tem afirmado sucessivas vezes que assiste ao povo do Sara Ocidental o direito à autodeterminação nos termos das suas resoluções do início da década de 1960. Nesse sentido, mantém-se no terreno, desde 1991, e com mandatos anualmente renovados, a Minurso – Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental, sinal inequívoco que a situação actual carece de legitimidade e de uma solução em linha com o estatuído nas resoluções sobre autodeterminação.

O senhor Othmane Bahnini afirma – e correctamente – que o Reino de Marrocos “apresentou ao secretário-geral da ONU a ‘Iniciativa Marroquina para a negociação de um estatuto de autonomia para a região do Sara’. Infere-se que considera haver um claro paralelismo entre essa proposta e aquela que foi apresentada ao povo timorense em 1999. Então, fruto das negociações sob a égide do secretário-geral da ONU, Portugal (com apoio dos nacionalistas timorenses) e a Indonésia acordaram na realização de um referendo no qual o que estava em causa era a concessão de um estatuto de autonomia para Timor-Leste no seio da República Indonésia – referendo esse que se viria a realizar a 30 de Agosto de 1999. Só que há uma diferença fundamental.

No acordo de Nova Iorque de 5 de Maio de 1999 estipulava-se (artigo 6.º):

Se o secretário-geral apurar, com base no resultado da consulta popular e em conformidade com o presente acordo, que o enquadramento constitucional para uma autonomia especial proposto não é aceite pelo povo de Timor Leste, o Governo da Indonésia dará todos os passos necessários, em termos constitucionais, para pôr termo ao seu vínculo com Timor Leste, restaurando desse modo, nos termos da lei indonésia, o estatuto detido por Timor Leste antes de 17 de Julho de 1976, e os Governos da Indonésia e de Portugal e o secretário-geral acordarão os moldes de uma transferência pacífica e ordeira da autoridade em Timor Leste para as Nações Unidas.

Quer dizer: os timorenses tinham uma opção entre permanecer no seio da soberania indonésia desfrutando de uma “autonomia especial” ou ver reconhecido o seu direito à independência

Ora, a proposta do Reino de Marrocos para o Sara Ocidental feita a 11 de Abril de 2007 (Documento ONU S/2007/206) é diferente. O que é oferecido é uma alternativa entre um estatuto de autonomia no quadro da soberania do Reino de Marrocos (caso o resultado do referendo aponte nesse sentido), ou a permanência no Reino de Marrocos sem estatuto de autonomia... Em qualquer dos casos, a soberania marroquina não entra na equação. Regressar ao statu quo ante – como se plasma no acordo sobre Timor-Leste – não é uma hipótese admitida pela iniciativa marroquina.

Ora, a Resolução 1541 (XV) da AG da ONU (Dezembro de 1960) contempla três possíveis saídas de uma situação de dependência colonial: a independência (“emergência como Estado soberano independente”), a “livre associação a uma nação independente”, ou a “livre integração numa nação independente” (Princípio VI). Para cada uma dessas hipóteses são estipuladas condições, sendo que para as duas últimas a resolução determina (Princípios VII, VIII e IX) que tal solução depende “de uma resolução livre e voluntária dos povos dos territórios em questão, exercida através de processos democráticos e informados”, e ainda que “resultem da vontade livremente expressa dos povos em questão, agindo com plena consciência da alteração de estatuto que tal implica, tendo os seus desejos sido expressos através de processos informados e democráticos, conduzidos de forma imparcial, e baseados no sufrágio universal de adultos”.

Parece não haver lugar a dúvidas: o processo tem de ser democrático, com base numa eleição por sufrágio universal de adultos (que é o ponto que mais polémica tem levantado no caso vertente, havendo diferentes ideias sobre quem deve pertencer ao universo de votantes). Mas tem de contemplar igualmente as diferentes hipóteses previstas na Resolução 1541 (XV), sem o que o carácter devidamente informado do processo não se verificaria, tanto mais que é sabido haver uma significativa parte da população que deseja a independência.

Porém, a proposta do Reino de Marrocos apenas considera, sob diversas modalidades, a integração do Sara Ocidental na sua soberania – o que nega frontalmente os pressupostos do exercício da autodeterminação nos termos das resoluções da ONU. Ora, antes de mais, é essa a questão que tem de ser respondida – o estatuto particular do território no seio de Marrocos é uma decorrência de um problema anterior, que pode ou não ser pertinente, dependendo da inclinação do povo do Sara Ocidental para se considerar marroquino.

Queira o Reino de Marrocos aceitar a inspiração do acordo referente a Timor-Leste e um passo de gigante será dado.


 
 
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Rui Feijó



 
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