O pensamento de Vladimir Putin, não é novo. Os valores da humanidade e da civilização são uma reinterpretação com origens filosóficas que podemos encontrar no revisionismo histórico da Rússia pré-imperial e da União Soviética. Todas estas reinterpretações históricas encontram-se relacionadas com os movimentos do romantismo alemão e banhados por um cristianismo ortodoxo (ultra)radical, que colocam a Rússia no centro da civilização da humanidade. O Czar, e agora Putin, é visto como alguém designado por Deus, com uma missão divina. Este é o excecionalismo russo que tem vindo a ser encarnado em vários discursos de Putin, ao longo dos seus 23 anos de mandato. Citando Ivan Ilyin, um dos grandes expoentes máximos do cristianismo (ultra)ortodoxo e radical, entre outros autores, o Presidente Russo tem vindo a defender a tese de que a Rússia é a guardiã da Europa e dos seus valores e que no fundo apenas vem salvar a Europa da decadência total.
O Ocidente (Europa e EUA) baniram a ideia de civilização do vocabulário internacional. Talvez porque a ideia de civilização está ela própria relacionada com a expressão “Civilização Ocidental”. As ideologias do progresso, dos séculos XVIII e XIX, primeiro com o iluminismo e depois com todas as suas vertentes do liberalismo, marxismo e nacionalismo prevaleceram e posteriormente agarram na ideia de civilização e meteram-na na “gaveta”. A civilização é um conceito muito antigo, tem um caráter estanque, isto é, não se transforma ou transforma-se muito devagar, não permitindo mutação. Apesar de as ideologias, serem movimentações radicais, como foi o caso do comunismo ou do nazismo, também têm vertentes muito mais moderadas. Um Estado que professa uma determinada ideologia tem amigos e inimigos no sistema internacional, por razões ideológicas, pode mudar e fomentar a paz. Porque a ideologia tem uma vertente de diversidade e de entendimento. Pelo contrário, uma civilização é um conceito estático, majestático, profundamente tradicional que não permite replica. Por este motivo, a ideia de civilização é considerada no Ocidente uma ideia perigosa e que de alguma forma foi banida. Quando a União Soviética colapsou e cai o Muro de Berlim, muitos dos teóricos das relações internacionais e da teoria política, começam a pensar como é que iria ser a conflitualidade no futuro.
Neste pensamento podemos encontrar duas premissas diferentes. A primeira vertente, vem defender que o liberalismo democrático venceu. Como foi a única ideologia do progresso que sobreviveu a todas as outras, o mundo mais tarde ou mais cedo iria-se tornar ele próprio democrático. Francis Fukuyama, com a ideia do fim da história, foi o seu grande defensor e percursor. A segunda aceção, nasce com Samuel Huntington, com a ideia do choque das civilizações, considerada naquela altura como uma ideia xenófoba. A argumentação era a de que uma vez que já só havia uma ideologia e essa ideologia era relativamente consensual, e o sistema internacional não é pacífico, os grandes conflitos do século XX e XXI iriam ser conflitos civilizacionais. Huntington, revisitou o passado histórico e olhou para as diferentes civilizações, observando que se os Estados que hoje encarnam estas civilizações se transformassem em grandes potências, iriam mais tarde ou mais cedo entrar em conflito com a civilização ocidental. Nessa altura, este argumento não teve qualquer tipo de aceitação no Ocidente.
Apesar disso é um argumento que cada vez mais as relações internacionais e a teoria das relações internacionais estão a recuperar, precisamente por causa de momentos como os que estamos a viver hoje com a guerra da Ucrânia. No dia 9 de maio (dia da vitória), Putin escolheu começar o seu discurso por dizer: “A civilização está num ponto de viragem”. A civilização é um conceito que já existiu e que a história de alguma forma apagou, porque o considerou perigoso. Mas, aos poucos, vamos dando conta que está a regressar.