As agendas políticas surgem-nos, cada vez mais, carregadas de propostas incongruentes e sustentadas em argumentos que o tempo evidencia como falácias. Esta semana, tivemos mais um exemplo, em torno das condições da atribuição de subsídio ao pagamento de rendas das casas. Como diz o povo, quem se lixa é o mexilhão, sempre convocado para pagar os custos das “asneiras” da gestão, seja ela pública ou privada.
No passado dia 21, o Banco de Portugal divulgou o seu “Boletim Económico jun. 2023”. No capítulo “Políticas em Análise” é tratado o tema “Diferencial salarial entre os setores público e privado em Portugal” a partir de fontes estatísticas sólidas e comparando dados relativos a 2008/2009 com os de 2018/2019 (autores: Cláudia Braz, Manuel Pereira, Shamin Sazedj). Esse estudo alerta para a necessidade de “ter em conta as caraterísticas dos Recursos Humanos de cada setor” e assume que a situação no setor público tem sofrido “alterações profundas nas últimas duas décadas”.
Na Administração Pública, a percentagem de trabalhadores com licenciatura ou mais é incomparavelmente maior que no privado, dado o papel do Estado na garantia de direitos e serviços fundamentais. Os autores expressam que a diferença salarial entre os salários praticados nos dois setores (nos seus globais) é hoje “menor que no passado”, mesmo para o conjunto dos que possuem licenciatura ou mais. E apresentam uma complementaridade preocupante: no caso dos “licenciados no início de carreira, no período recente” verifica-se erosão total da diferença, significando isso que, “O setor público perdeu assim toda a capacidade de atração de jovens licenciados relativamente ao setor privado”.
Dizem-nos os autores que parte da vantagem (em queda) que o geral dos licenciados ainda tem, “advém da maior proporção de licenciados a ocupar profissões menos qualificadas no setor privado do que no setor público”. Existem dados que provam um crescimento acelerado do número de trabalhadores, com licenciatura ou mais, em trabalhos não qualificados no setor privado e recebendo o salário mínimo. E, uma grande parte dos muitos milhares que emigram fazem-no para fugir a essa triste realidade. O setor privado fica, assim, mal na fotografia: anda muito pouco à procura de “talento”.
No setor público, os salários de todos os trabalhadores estiveram praticamente congelados durante muito tempo, e agora estão a crescer menos que no privado. Isso contribuiu, por exemplo, para que na área da saúde, no ano de 2021, tenham saído mais trabalhadores que nos nove anos anteriores. Estas fugas são outra das explicações de mudanças atrás descritas.
Ora, como todos os salários (do público e do privado) têm perdido valor real, mas de forma mais acentuada no setor público, temos uma harmonização de salários entre os dois setores feita em retrocesso e inserida numa política de desvalorização salarial e das profissões, nomeadamente de muitas altamente qualificadas. Neste processo, o governo assume, tristemente, o papel de vanguarda.
Contradição suprema: estudos de instituições que defenderam políticas regressivas e de desvalorização salarial, que aplaudiram maior injustiça na distribuição da riqueza, que promoveram, muitas vezes com mentiras, os fundamentalismos da contração da despesa pública, vêm agora confirmar o erro dessas posições.
Não basta constatar os erros através de estudos. Fazer ouvidos de mercador e prosseguir neles é caminhar para o descalabro.