O útimo quartil do século XIX e início do XX revelaram-se profícuos para literatura. A linguística cultural atravessou fronteiras e alimentou a imaginação popular sobre outro Mundo possível. Promoveu debates temáticos que, por meio de distintos autores/ras, tornaram-se universais sob a égide do capitalismo. Neste contexto, gostava de enfatizar a dialética da fome e sua presença hodierna.
Em 2022, segundo relatório da FAO/ONU, 9,8% da população global estava em situação de insegurança alimentar. Implicando, deste modo, o desenvolvimento das potencialidades/inteligências indispensáveis para realizar a utopia emancipatória.
Knut Hamsum, prêmio Nobel de 1920, e Franz Kafka serão minhas alegorias literárias para abordar essa complexa problemática. Em “Fome” (1890) e “Um artista da fome” (1922), respectivamente, há uma busca heróica pela verdade empreendida por seus personagens centrais. No primeiro, um clássico universal das letras, a fome representa o âmago do absurdo. Trata-se da luta diária de um escritor para obter comida e suprir as vontades do corpo e da mente. Consciente de que em estado famélico perderá o potencial crítico para compreender o fetiche da mercadoria como esteio do sistema de produção social do capital ele “tinha entrado no estado de loucura provocado pela fome, sentia-se vazio” (p. 98)
A fome, no conto kafkaniano, é representada por um artista que exercita a performance do jejum para manifestar sua insatisfação com a culinária imposta. Uma alegoria dialética sobre o autoritarismo vigente. Nas palavras do próprio jejuador: “se eu tivesse encontrado o alimento que me agrada, acredite, teria me empanturrado como você e como todo mundo” (p. 57). A liberdade, nesta análise sutil da fome, é retratada como algo insuportável frente as mandíbulas do poder.
Em comum, nenhum dos protagonistas consegue interpelar a triste realidade. Perderam, no processo de mercantilização da vida, a condição humana fundamental: a dignidade. Ao serem convertidos em “coisas” - desprovidas de significado para além dos critérios de produção/consumo - deixaram a autoridade moral e o respeito por si mesmos se diluirem na obscuridade da violência.
O absurdo nesta história é que a realidade foi imputada a sua falsa representação. Hamsun e Kafka, contudo, admitem que chegamos a um grau civilizacional em que não há esperança para além da morte se, e somente se, não enfrentarmos a barbárie da fome com todas as nossas forças e agirmos contra a sina do capital.
Afinal, parafraseando a canção dos Titãs: eu não quero só comida. Quero comida, diversão e arte. Quero a vida como a vida quer. Quero por inteiro, não pela metade, uma saída para um lugar fora daqui. E tu, tens fome de que?