Operação Mais Além (O.M.A.) parece-me ser uma designação apropriada para a missão assumida pelo governo de Pedro Passos Coelho. O «mais além» resulta do empenho em ultrapassar os mandamentos da troika nos cortes, nas privatizações, nos impostos e nas taxas; o «operação» do tónus marcial imposto à sua execução − avançar, em passo de corrida, sem desfalecimentos, hesitações ou consideração da extensão dos danos colaterais.
A O.M.A. entra neste mês de Setembro numa fase vertiginosa que é enfrentada com entusiasmo pelos seus protagonistas. «Vamos fazer um corte na despesa histórico, de uma maneira que nunca foi feita desde 1950», afirmava há dias na televisão um extasiado ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, deixando o espectador a adivinhar o que pode haver de tão empolgante em cortes tão desproporcionados e sangrentos.
É evidente que se a O.M.A. fosse a simples operação de consolidação orçamental que diz ser, destinada apenas a dar confiança aos credores, não suscitaria nenhum entusiasmo. Deste ponto de vista, como todos sabemos, até o extasiado ministro, os seus resultados são bem mais do que incertos. O mais certo é sairmos dela mais pobres e ainda menos consolidados.
Mas acontece que a O.M.A. é sobretudo uma gigantesca «reforma estrutural» orientada para a desvalorização do trabalho, a privatização para lá de todos os limites, a erradicação da universalidade e da tendencial gratuitidade dos serviços públicos − a grande oportunidade de concretização de um programa político que é há muito desejado sem poder ser publicamente apresentado e sujeito a sufrágio.
A razão pela qual o programa implícito da O.M.A. não pode ser confessado é evidente: a maioria preza os valores do Estado Social e quer preservá-los. Este programa nunca seria sufragado em eleições democráticas, nem seria exequível em condições de normalidade democrática; a sua exequibilidade depende de circunstâncias excepcionais, de uma espécie de estado de excepção.
O estado de excepção, por enquanto apenas financeiro, está aí. Carpe diem. É agora. Daí o empolgamento.
Mas a excitação do ministro da Economia não pode deixar de ser encarada com apreensão pelos serviços de acção psicológica da O.M.A.. Estes serviços sabem que os cortes devem ser anunciados sem que transpareça satisfação macabra com a antecipação da dor. Sabem que o sofrimento alheio deve ser apresentado como «sacrifício inevitável», com ar compungido, sem sorrisos. Não ignoram que a coligação política no governo é demasiado frágil para um programa tão ambicioso – demasiado encostada à direita e a interesses poderosos, demasiado vulnerável a justificadas suspeições de conspiração destes interesses contra a maioria − e que a viabilidade da execução do programa no curto espaço de quatro anos depende de forma crucial do consentimento do público. Aos serviços de acção psicológica incumbe a produção desse consentimento.
A produção de consentimento por parte dos serviços de acção psicológica da O.M.A. tem vindo a assentar em dois pilares: o pilar da gordura e o pilar da justiça.
O pilar da gordura tem dado origem a diversas formulações. Primeiro, gorduras, mordomias, fundações, institutos e empresas públicas que podiam simplesmente desaparecer sem nenhuma perda e com um enorme benefício em redução da despesa. Depois, sacrifícios do Estado substitutos de sacrifícios da sociedade ou, como dizia o ministro extasiado, exemplos de abnegação: «Não podemos pedir sacrifícios às famílias e às empresas se o Estado não der o exemplo».
O pilar da gordura mobiliza a indignação pública contra a promiscuidade entre interesses privados e públicos, que efectivamente existe em muitos casos, e a percepção da incúria no serviço público, que também não falta. Faz efeito, como não podia deixar de ser. Mas é, como veremos, uma inverdade reforçada pela parte de verdade que transporta.
O pilar da justiça é mais traiçoeiro. Parte da constatação de que os «sacrifícios» são difíceis de obter poupando na violência quando existe a percepção de que estão distribuídos de forma iníqua. A ideia principal é a provisão de serviços e bens públicos a duas velocidades – caros «para quem mais pode», mais baratos para os outros. Mas por arrasto vem a tributação e aí se começa a ver que falar de justiça e equidade envolve sempre o risco de haver quem exija justiça e equidade a sério. É perigoso falar de justiça, sobretudo quando o que na realidade se quer fazer, como veremos, é apenas mobilizar a justiça contra a justiça.
As narrativas da gordura e da justiça terão de se confrontar nos próximos tempos com a aprendizagem que resulta da experiência.
Relativamente à gordura ficou já claro que afinal não existiam extensas listas de entidades públicas parasitárias cuja extinção permitisse realizar a «consolidação orçamental». Ficará claro em breve que o emagrecimento do Estado que conta é feito à custa ou de redução da provisão ou de aumento da comparticipação dos utentes nos seus custos: já vimos nos transportes, veremos em breve na saúde e no ensino. Não há emagrecimento do Estado que se veja que não tenha custos para as pessoas. Não há «sacrifícios» públicos que não sejam «sacrifícios» pessoais.
Com a justiça veremos que a maior parte é encenação. Irão os rendimentos do capital ser taxados como os do trabalho, todos eles englobados na massa tributável por um imposto único? Irão as transferências para paraísos fiscais ser no mínimo dificultadas? Claro que não. O que irá ficar da justiça prometida é uma cosmética taxa marginal mais alta para altos rendimentos do trabalho e o regime de pagamento dos serviços públicos a duas velocidades.
A introdução de taxas mais elevadas na saúde e talvez na educação para os maiores rendimentos tem como objectivo tornar competitiva a provisão privada. O resultado será o abandono do serviço público por parte dos segmentos da sociedade de maior rendimento e a redução do Serviço Nacional de Saúde e da escola pública a um regime pobre para pobres. Em nome da justiça e a pretexto de um combate às pensões milionárias, algo semelhante será preparado para os regimes de pensões com a introdução de tectos contributivos.
O regime de pagamento a duas velocidades transformar-se-á desta forma, em nome da justiça, num regime de provisão a dois níveis de qualidade – um para ricos, que pagam, outros para pobres, que pagam menos. A justiça, descobrir-se-á no final, foi usada contra a justiça.
Mas é preciso reconhecer que até agora os serviços de acção psicológica da O.M.A. não se têm saído mal. Resta saber quanto tempo irá demorar ainda a aprendizagem colectiva que acabará por transformar o consentimento em oposição e alternativa.