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11-04-2023        A Tarde [BR]

“Para os subalimentados de sonhos, a poesia é para comer”. Assim encerra um dos mais célebres poemas de Natália Correia: “Em defesa do poeta”. O objetivo era despertar a classe artística para intervenção política e valorização da liberdade de expressão em plena ditadura salazarista. Isto após ter sido censurada e condenada a três anos de cadeia (com sentença suspensa) pela publicação do livro “Antopogia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” (1966).

Se estivesse viva, a açoriana nascida na Ilha de São Miguel, estaria a completar 100 anos. Poetisa, dramaturga, jornalista e militante política – foi deputada na Assembleia da República após a Revolução dos Cravos - destacou-se pela luta em favor da valorização da cultura, da defesa dos direitos das mulheres e pela educação de/para os Direitos Humanos.

Uma das vozes portuguesas mais eloquentes e críticas ao Estado Novo, seus escritos acutilantes foram constamente proibidos. Um bom exemplo é a produção teatral. A peça “O homúnculo” (1966) - sátira política que ridiculariza as estruturas do poder e a infame postura ditatorial do professor António Salazar - apresenta-nos um país com aspirações de Império, mas que não passa de um feudo agrícola em plena modernidade industrial. Não precisamos acrescentar que os órgãos de repressão, leia-se Polícia Internacional e de defesa do Estado (PIDE), apreenderam a obra e impediram-na de exposição pública em todo o País.

A conturbada década de 1960 marca um dos períodos mais profícuos de Natália Correia.  As produções de “A pécora” (1967) e “O encoberto” (1969), somadas ao “O homúnculo”, compõem um vigoroso contributo à conscientização política, social e identitária de Portugal. Em “A pécora”, por exemplo, questiona as relações urdidas entre o poder eclesiástico e o Estado para manter a disciplina do povo. Isto frente ao programa de austeridade que comprometia investimentos em políticas públicas fundamentais (educação e saúde, essencialmente).

Em meio a celebração de seu centenário, no qual a vitalidade e a consistência crítica das suas obras continuam a suscitar eloquentes debates - o que teria Natália Correia a dizer sobre a mais recente denúncia de abuso sexual infantil perpetrado por padres da Igreja católica? Conforme o relatório “Dar voz ao silêncio” (2021), apresentado pela Comissão Independente, são mais de 5 mil vítimas até o momento.

Considerando sua capacidade de premonição - comprovada com a intuição sobre o fim do salazarismo e a entrada de Portugual na Comunidade Econômica Europeia - acreditamos que avaliaria o caso com indignação poética. Afinal, “é um instantâneo das coisas apanhadas em delito de perdão, a raiz quadrada da flor que espalmais em apertos de mão”.
 


 
 
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Antonio Carlos Silva



 
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