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03-04-2023        Jornal de Notícias

Os escritos da prisão de Luandino Vieira acabam de ser reunidos em arquivo digital, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Grande parte da obra ficcional do autor de Lavanda foi escrita durante os 12 anos em que esteve preso de 1961 a 1964 em várias cadeias da cidade de Luanda, tendo sido enviado para o Tarrafal, em Cabo Verde, onde permaneceu até 1972, altura em que foi transferido para Lisboa, em regime de residência fixa, até 1974. São do período da prisão 17 cadernos com anotações diarísticas, correspondência, postais, desenhos, cancioneiros populares, esboços literários, textos em quimbundo, traduções e notas várias. Em 2015, a editorial Caminho publicou em livro Papéis da Prisão-Apontamentos, diários e correspondência (1962-1970), ainda com apoio da Gulbenkian. E agora, graças ao trabalho realizado sob a coordenação de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, com a equipa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, todo o acervo ficou acessível para consulta pública.

Foi-me dado reencontrar Luandino Vieira, retomando um antigo diálogo extraordinário, que se tem traduzido em admiração e amizade. E de novo falámos, em várias declinações, dos mundos da língua portuguesa língua portuguesa que apenas ganha sentido pleno se vista corno pluralidade. E ambos nos demos, sem combinação prévia, a lembrar palavra por palavra o "Chiquinho" de Baltazar Lopes, o Caleijão, a importância e a riqueza dos crioulos, as incertezas, os debates no seio da revista Claridade sobre a importância simbólica do protagonista do romance fundador da moderna literatura de Cabo Verde. E esse encontro inesquecível ocorreu, num rasgo de felicidade, um dia apenas depois de termos iniciado ali mesmo a invocação de Eduardo Lourenço, vindo à baila o que Roberto Vecchi dissera no lançamento desse colóquio, que constituiu um aperitivo para a reflexão necessária sobre o ensaísta de Do Colonialismo como Nosso Impensado (Gradiva, 2014).

Quer no testemunho direto de Luandino Vieira, quer na releitura dos textos de Eduardo Lourenço, podemos encontrar, de modo objetivo, sem complexos, nem justificações retrospetivas anacrónicas, uma análise do presente e do futuro sobre um 'impensado" que reclama uma leitura desapaixonada sobre quem somos na relação com a História. De facto, a raiz verdadeira de uma "estranha permanência e difusão do mito do nosso colonialismo 'diferente dos outros' reside na identidade substancial das situações metropolitana e colonial, ambas coloniais, a tal ponto que salvas certas manifestações tipicamente esclavagistas e cada vez mais incompatíveis com os tempos, com a melhor consciência do mundo, o colonizado da metrópole não acha muito estranha a situação do colonizado das "províncias", nem a má consciência o apavora quando se comporta diante dele como no fundo o senhorito da Metrópole se comporta para com ele. A nossa idílica harmonia colonial, condimentada com epiderme exótica e alguma água benta, repousa sobre esta cinzenta identidade". E enquanto ingleses, franceses, holandeses e belgas foram colonialistas que se aceitaram como tais, nós (como os castelhanos) não sabemos o que isso é, "somos colonialistas como somos portugueses". E assim há um "espantoso silêncio" a esconder a aventura colonial - "sob a indiferença dos trópicos e o esquecimento do mundo".

É esse esquecimento que nos obriga a pensar que não fomos os únicos a deixarmo-nos esquecer dessa maneira. Eduardo Lourenço foi dar na explicitação de essenciais intuições sobre as nossas especificidades, já que "tudo isto está de acordo com a nossa maneira de estar no mundo". E por isso mesmo o impensado (do salazarismo e do colonialismo) não pode ser visto de ânimo leve. E "só no dia em que de portas adentro descobrirmos o sentido do que nos aconteceu deveras e medirmos a nossa agora exata dimensão, a já visível ressaca será crise de identidade e reformulação de destino".


 



 
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