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07-03-2023        Público

Um ano depois do início da guerra da Ucrânia, o balanço pode resumir-se assim: a destruição da Ucrânia, o empobrecimento e o crescente isolamento internacional da Europa, o enriquecimento excepcional das empresas de armamento e de energia fóssil (na sua maioria, norte-americanas).

A cegueira informativa produzida pelos media hegemónicos quase não deixa ver três fenómenos que podem trazer alguma esperança a quem concorde com Erasmo que uma paz imperfeita é sempre preferível a uma guerra justa – “se é que tal coisa existe”, como acrescentava o grande humanista de Roterdão. Os três fenómenos são: o emergente movimento contra a guerra e pela paz tanto na Europa como nos EUA; as declarações de militares de alta patente dos EUA e da Alemanha sobre a impossibilidade de uma solução militar para o conflito; e a disponibilidade de alguns países importantes (China, Índia e Brasil) para mediar uma solução pacífica. Qualquer destes factos é escassamente noticiado pelos media.

Quem mais interesse tem na paz é quem mais perde com a guerra, ou seja, a Ucrânia e a Europa. Inversamente, quem menos interesse tem na paz é quem ganha mais com a guerra. Por sua vez, o que se perde e o que se ganha vai muito para além do que é mais visível. Se a Ucrânia sangra no corpo, a Europa sangra na alma. Uma anti-Europa nasce dentro da Europa. A Europa das compras conjuntas de vacinas e medicamentos para garantir o bem-estar dos cidadãos dá lugar à Europa das compras conjuntas de armas para causar a morte de europeus ucranianos e russos (por agora) e aumentar o mal-estar de cidadãos empobrecidos, tanto nas condições de vida material como na sanidade espiritual.

É a Europa dos anões valentões porque subservientes (Emmanuel Macron, Olaf Scholz, António Costa) contra a Europa dos gigantes ponderados porque conscientes dos riscos (François Mitterrand, Willy Brandt, Olof Palme). De facto, não é uma anti-Europa, é a outra Europa, a Europa arrogantemente ignorante e colonialista, o seu lado reprimido a estilhaçar-se na cara das boas consciências.

Desde Dezembro passado, o Presidente Zelensky tem vindo a promover o seu plano para a paz assente em dez pontos: segurança nuclear à volta da maior central nuclear da Europa, Zaporíjia; segurança alimentar e exportação dos cereais ucranianos; segurança energética mediante restauro da infra-estrutura energética e restrições do preço da energia russa; libertação de todos os presos e deportados, incluindo presos de guerra e crianças deportadas para a Rússia; restaurar a integridade territorial da Ucrânia; retirada das tropas russas e restabelecer as fronteiras com a Rússia; um tribunal especial para perseguição dos crimes de guerra cometidos pelas tropas russas; desminagem e restauro do tratamento de água; criação de uma arquitectura de segurança euro-atlântica que dê garantias à Ucrânia; confirmação do fim da guerra num documento assinado pelas partes. A reacção a este plano por parte dos países considerados aliados foi cautelosa desde o início. A diplomacia brasileira já sinalizou que alguns destes pontos não poderão ser considerados inegociáveis

O objectivo, sem dúvida difícil, mas não impossível, é garantir a segurança da Ucrânia sem que a Rússia veja a Ucrânia transformada na linha avançada de uma força hostil, a NATO. Duas ideias ganham terreno: é preciso regressar aos acordos de Minsk sobre as zonas russófonas do Donbass, mas agora de boa-fé e em obediência à Resolução 2202 do Conselho de Segurança da ONU de 17 de Fevereiro de 2015; a Crimeia é uma linha vermelha, como o secretário de Estado americano, Anthony Blinken, reconhece. A região do mar Negro é tão importante para os russos e a sua frota como as Caraíbas ou a região do Panamá para os Estados Unidos, e como o mar do Sul da China e Formosa para a China. Expulsar a Rússia do mar Negro é provocar uma guerra nuclear.

A guerra da Ucrânia é uma guerra por procuração entre os EUA e a Rússia; só haverá paz quando Washington e Moscovo quiserem. A Ucrânia e a Rússia estiveram mais perto de um acordo de cessar-fogo, logo no início da guerra (Março-Abril de 2022), mas, segundo o ex-primeiro-ministro israelita Naftali Bennet, os EUA e o Reino Unido não se mostraram interessados na paz. E depois disso a Ucrânia e a Rússia negociaram o acordo da exportação de cereais.

Neste momento, começa a acentuar-se uma divisão no seio da administração Biden entre os que pretendem uma solução diplomática e os que insistem em aumentar a ajuda militar à Ucrânia com a esperança de que a guerra seja ganha sem se chegar a uma confrontação directa entre a NATO e a Rússia e, por consequência, ao uso de armas nucleares. A segunda posição continua a ser dominante, mas a esperança em que assenta é cada vez mais ilusória.

A paz constrói-se não preparando a guerra, mas preparando a disponibilidade e criando a oportunidade para as palavras substituírem as armas. A política do ódio e os ataques ad hominem são próprios de um tempo que confunde causas com consequências e procura na unanimidade o refúgio da mediocridade.

Nada disto é novo. No início da Primeira Guerra Mundial, a histeria bélica dominava a opinião publicada. O grande líder socialista francês Jean Jaurès afirmava lapidarmente, em 25 de Julho de 1914, seis dias antes de ser assassinado por um fanático militarista: “Cada povo andou pelas ruas da Europa fora com uma pequena tocha na mão; e agora, eis o incêndio.”

Aliás, esta histeria atingia os melhores. Em Novembro de 1914, Thomas Mann publicava um artigo intitulado Pensamentos em Tempo de Guerra, em que defendia a guerra como um acto de Kultur (ou seja, a Alemanha, como ele próprio acrescentaria) contra a civilização. Para ele, a Kultur era sublimação do demoníaco e estava acima da moral, da razão e da ciência. E concluía: “A lei é a amiga dos fracos, gostaria de nivelar o mundo; mas a guerra faz surgir a força.” Segundo Mann, Kultur e militarismo eram irmãos. Em 1918-1920, publicou o livro Reflexões de um Homem Não-Político em que defendia a política do Kaiser e afirmava que a democracia era uma ideia antialemã.

Felizmente para a humanidade, Thomas Mann viria mais tarde a mudar de ideias e a transformar-se num dos grandes críticos do nazismo. Naquele período, tão trágico para a Europa como o actual, só duas grandes vozes contra a guerra se faziam ouvir: Romain Roland, na França; e Karl Kraus, na Áustria. Nenhum deles viveu o suficiente para saber que a história lhes dera plena razão.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
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