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23-02-2023        Público

Passou um ano sobre a invasão da Ucrânia, e os intelectuais ocidentais permanecem divididos. Uns estão silenciosos, outros fazem ouvir a sua voz até à exaustão, porque vivemos em democracia e temos uma opinião pública vibrante. O artigo de opinião de Boaventura de Sousa Santos (B.S.S., "O silêncio dos intelectuais", Jornal de Letras, 8-21 fev. 2023) aborda um variado leque de assuntos, mas a sua visão da guerra é tão parcial e equivocada como há cerca de um ano.

O autor reconhece que “Putin é um líder autocrático, amigo da direita e da extrema-direita europeias” (sic), mas esse facto fica de fora do seu argumento, o que é no mínimo espantoso: a Ucrânia como país não conta para nada, por isso está ausente das suas análises; estabelece um paralelo entre o crescimento da extrema-direita e o “anticomunismo” (o que é aceitável), mas jamais responsabiliza Putin por esse crescimento. Dizer que “é amigo” revela muita benevolência, dado o envolvimento direto do Kremlin em múltiplas ações criminosas contra a democracia.

Acusa a União Europeia de querer julgar os crimes de guerra (só do lado russo), colocando invasor e invadido no mesmo plano. Desde 24/2/2022 que, dia após dia, as imagens dramáticas de morte e destruição de um país chocam qualquer espírito humanista (intelectual ou plebeu). O silêncio de B.S.S. perante essa odiosa chacina é a contraparte do seu ruidoso antiamericanismo (veja-se “Boaventura de Sousa Santos, da ‘complexidade’ à teoria do ‘mas…’", PÚBLICO, 16/3/2022).

No próprio dia 24 de fevereiro, quando o Exército de Putin entrou no território ucraniano, o jornal online Esquerda.net publicava um pequeno texto sob o sugestivo título "Putin, o czar da extrema-direita russa e europeia", em que se mostrava o que todo o mundo sabe, que a larga maioria dos movimentos populistas de extrema-direita na Europa teve por trás o apoio financeiro e político de Putin.

Após um ano de guerra, as posições continuam irredutíveis. A parcialidade do diagnóstico é evidente quando se insiste sobretudo no alinhamento de Kiev com os EUA, esquecendo factos inegáveis: (1) que as oligarquias e redes mafiosas de corrupção que se espalharam na Ucrânia desde a independência tiveram, na generalidade dos casos, o seu epicentro no Kremlin (e não em Washington); (2) que os grupos neonazis que existem na Ucrânia, no Exército e fora dele, transportam a marca do KGB (hoje FSB), e em parte nasceram da reciclagem dos velhos "apparatchik" soviéticos; (3) Viktor Ianukovich, considerado o pior Presidente do país, foi um "fantoche" de Putin, fugiu para a Rússia em 2014, no seguimento dos protestos da Praça Maidan; (4) que este foi um movimento popular inorgânico, mas amplamente participativo, que denunciou a corrupção e se revoltou contra a revogação do acordo previamente negociado com a UE. Andei pessoalmente por Kiev nesse tempo e sei do que falo. Reduzir Maidan a um golpe ao serviço dos interesses americanos é um enorme equívoco.

É claro que numa guerra há excessos e violência de todas as partes (e o lado ucraniano não é exceção). Mas importa não omitir que, neste caso, o principal responsável tem um nome: chama-se Vladimir Putin. A não ser que se acredite na propaganda da “operação especial” para salvar a Ucrânia dos nazis, o foco da crítica tem de se dirigir a quem assaltou, violou o direito internacional, invadiu e roubou território – e continua a cometer os mais hediondos crimes de guerra –, em vez de centrar o argumento no ataque ao poder “satânico” da NATO e do Ocidente. Não é preciso ser-se complacente com a Rússia ou emular o poderio da China para criticar o imperialismo americano. E, mesmo “esvaziada” de valores, não troco a democracia ocidental pelas ditaduras de Putin ou Xi Jin Ping.

É verdade que a NATO foi expansionista, é verdade que a sua atitude agressiva no passado enfraqueceu o papel da ONU e irritou a Rússia. Mas a principal vítima dessa presença a leste foi a Ucrânia, entalada entre dois fogos; e mesmo os acordos de Minsk foram rasgados sobretudo por Putin, quando reconheceu unilateralmente a independência das duas “repúblicas” do Donbass, em meados de fevereiro de 2022.

Não deveria ser preciso, mas parece necessário lembrar que a presença da NATO na Europa não se deve a uma invasão militar, mas por decisão das potências e exércitos ocidentais após a derrota do nazismo. No início da Guerra Fria, Estaline liderava a URSS e, quando começou a corrida aos armamentos, os protagonistas foram as duas superpotências de então. Questão bem diversa é a atual necessidade de mais soberania da UE face à hegemonia dos EUA na NATO e na Europa. Nisso estaremos de acordo.

Concordo que a “ideologia anticomunista” se expandiu no mundo e continua a crescer, alimentando o populismo; só que, hoje, o sentimento anti-Putin nada tem que ver com anticomunismo a não ser em algumas mentes ortodoxas que pararam no tempo. Donald Trump e Jair Bolsonaro foram os dirigentes ocidentais mais íntimos de Putin e ganharam eleições vociferando contra o “papão comunista”. Só por má vontade se pode confundir o antiputinismo com o “ódio antirrusso”.

Por outro lado importa lembrar que não foi Marques Mendes que inventou a teoria de que o mundo democrático não deve ceder à chantagem da ameaça nuclear – reiteradamente proclamada por Putin, Labrov ou Medvedev – e que a ambição expansionista do atual poder russo, se não fosse o apoio ocidental e a resistência dos ucranianos, já teria atingido outros países europeus. Há um ano que essa corrente de opinião é dominante na Europa, e não creio que isso deva confundir-se com instrumentalização.

Não sou eu que o digo. Outras vozes mais habilitadas o vêm fazendo desde o início da guerra. Nomes como Teresa de Sousa e Pacheco Pereira (que B.S.S. diz seguir e admirar), mas também Nuno Severiano Teixeira e os próprios Nuno Rogeiro e José Milhazes (estes, sendo alvo continuado de detratores do campo da esquerda comunista) ou Miguel Monjardino, por exemplo. Todos intelectuais com presença mediática regular e que, mesmo sendo apelidados de pertencer à “direita conservadora”, não podem ser acusados de antidemocratas.

Recuso em absoluto a dicotomia simplista que divide as opiniões entre “belicistas” e “pacifistas”, usando o primeiro adjetivo contra quem defende a soberania da Ucrânia e a integridade do seu território. Todos queremos a paz. Mas a defesa da paz e o início de negociações sérias exige que a Rússia seja reconduzida às suas fronteiras legítimas, além de um maior protagonismo da ONU nesta matéria.

Por outro lado, pergunto, será que quem está do lado do país invadido e reconhece a necessidade de ajuda militar ocidental é necessariamente um adulador do modelo americano, da NATO ou do capitalismo neoliberal? Reconhecer o legado da ética republicana e dos valores ocidentais (liberdade, igualdade, justiça social, etc.) não faz de mim um “neoliberal” ou “eurocêntrico”.

A defesa da democracia e o combate persistente contra o seu esvaziamento e corrosão estrutural não se faz tentando diabolizar a Europa e o Ocidente. É com a democracia, e lutando a partir de dentro, que ela se fortalece e se reinventa, valorizando o espírito crítico, a participação cidadã e os movimentos sociais progressistas (como B.S.S. tem assertivamente teorizado). Não podemos é fazer a defesa radical da democracia e ser complacentes ou ceder à chantagem de um déspota com ambições imperiais, por medo do seu poder nuclear.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
Rússia    EUA    Vladimir Putin    guerra    Ucrânia    União Europeia