Afinal, quando começa o século XXI? Com essa questão, nada retórica, a professora Lilia Schwarcz (FFLCH/USP) iniciou sua palestra no Congresso Pensar o século XX, olhares do século vinte e um, organizado pelo Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra no último dia 02 de fevereiro. Entre tempo e temporalidade - lembranças e esquecimentos, a historiadora e antropóloga paulistana sinalizou o papel dos séculos como marcadores temporais e a relação do processo civilizatório com a democracia no transcorrer dos ciclos.
Neste contexto, resgatou a proposição de Eric Hobsbawm sobre o fim do século XX ser demarcado com a derrocada da URSS (26/12/1991). Para o historiador britânico, em contraposição aos apologistas do Fim da História - a vitória da democracia liberal de mercado contra o socialismo (realmente existente) -, estávamos a adentrar em mais um período de grandes incertezas e recrudescer da crise estrutural.
Destarte, asseverava que os problemas sociais, econômicos e ambientais não seriam sanados sob a égide da valorização ilimitada do crescimento sem fronteiras. Pelo contrário, o colapso civilizacional era o reflexo dialético da nossa falta de orientação frente ao presente e da nossa fragilidade teórica em compreender as idiossincrasias de um tempo histórico que irrompe as fronteiras do cronologicamente determinado.
Essa referência fez-me lembrar da autenticidade de Guy Debord para o debate em apreço. Consoante o pensador francês, no cultuado livro A sociedade do Espetáculo (1967), não podemos negligenciar que o tempo, essa medida arbitrária na natureza, somente adquire uma dimensão social quando há uma inflexão na estrutura de classes. Em outras palavras, quando grupos específicos assumem as rédeas do poder e, “não somente se apropriam do excedente material que a sociedade consegue produzir, como, sem terem já necessidade de passar todo o seu tempo a trabalhar, se podem dedicar às aventuras e às guerras” (Capítulo V, tese 128, p 104).
Na sociedade capitalista o tempo histórico torna-se o seu principal produto. Uma mercadoria que precisa ter utilidade e valor de troca. Portanto, para Debord, a história do desenvolvimento produtivo está vinculada ao processo de evolução temporal - que é irreversível e conduz à barbárie civilizacional.
Assim, cientes de que a expropriação do tempo social é um obstáculo para o acesso à vida histórica, o início do século XXI corresponde ao intransigente ano de 2020 - caracterizado pela conjunção dos tempos pandêmicos, digitais e autoritários denunciados por Schwarcz. O ínicio de uma época em que, parafraseando Euclides da Cunha, ou progredimos ou desaparecemos. Estamos condenados à civilização (Os Sertões).