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02-02-2023        Público

Olhada a partir do Brasil a guerra da Rússia contra a Ucrânia ganha contornos particulares em que a condição periférica faz toda a diferença. Em Portugal será uma minoria radicalizada, mas no continente sul-americano é mais expressiva a visão da guerra através dos binóculos instalados no Kremlin, ou seja, revertendo o exército invasor em vítima do poder satânico da NATO e dos EUA.

O regresso à mesa das negociações depende da correlação de forças no terreno e do cálculo que os beligerantes façam sobre os ganhos e perdas. Mas quando se omite que há aqui um agressor e um agredido, entramos no relativismo desculpabilizador. Visto do Sul, em especial do Brasil, a questão da invasão russa é desde logo obliterada pela memória de outras invasões ou ações golpistas ocorridas na América Latina perpetradas pelo imperialismo americano.

No campo da esquerda, em particular, o antiamericanismo é bastante arreigado no Brasil e na América Latina, por razões compreensíveis. Se os supostos “donos do mundo” ditaram a sua lei contra o inimigo do Leste durante a Guerra Fria, e se com a queda da URSS esse poder unipolar ganhou ainda mais força, importa antes de mais dar atenção a quem, hoje, tem meios para se opor a esse poder hegemónico. Mais: se os EUA são no século XXI, tal como foram no século XX, o principal suporte do capitalismo predatório e do neoliberalismo, é imperioso dar espaço a quem possa oferecer-se como “alternativa” ou, pelo menos, como contrapoder capaz de reequilibrar o instável xadrez mundial. E é aí que entram a Rússia e mesmo a China como referências a considerar na equação entre o Brasil e o mundo.

A memória recente de um período áureo de hegemonia “lulista”, como foi o promissor horizonte dos BRIC, começa agora a ser reavivada com o regresso de Lula da Silva (L.S.); e isso ajuda a reforçar esse sentimento difuso de um “acerto de contas” com o Ocidente colonialista, em última instância (ainda) considerado por muitos a principal fonte do seu atraso.

É nesse quadro que interpreto os comentários recorrentes acerca da guerra e da situação económica na União Europeia. O declínio do Ocidente, a decadência da Europa ou o “colapso iminente do capitalismo” são afirmações que, nos primeiros governos de Lula foram antevisões voluntaristas, fundadas numa expectativa de crescimento económico que acreditou numa “ultrapassagem” rápida da ex-metrópole imperial (Portugal estava rendido a uma troika implacável) na corrida brasileira por um novo modelo de desenvolvimentismo.

Dez anos depois, com o fim dessa euforia (quando se iniciou a implosão e posterior colapso da primeira fase do lulismo, com o impeachment de Dilma e a prisão de Lula da Silva), o atual cenário internacional atrai de novo os olhares latino-americanos para a Europa, agora por via da guerra e dos efeitos da covid-19 – e diante de uma crise tão ou mais profunda do que a do subprime (2008-2010) – sob a influência de um viés ideológico que vê a UE à beira do colapso e com ele a implosão do capitalismo. Dir-se-ia que esse diagnóstico negativo e cético apontado ao Norte colonizador e à Europa serve de catarse para atenuar a gravidade das crises caseiras e a incapacidade de as elites locais implementarem um efetivo projeto reformista de desenvolvimento.

Neste quadro, os comentários aos efeitos catastróficos da guerra da Ucrânia na Europa insistem na culpabilizaçã0 exclusiva do Ocidente, omitindo ou menosprezando as responsabilidades do agressor russo. Por um lado, tendem a justificar a fatalidade/necessidade de um recuo ou “rendição” perante o poder russo; por outro, não vislumbram nas instituições da UE nenhuma virtude. A Europa é tão-só considerada um instrumento dos americanos.

Note-se o paradoxo: enquanto L.S. pretende relançar na América Latina um Mercosul fortalecido e até já fala numa moeda única, a esquerda marxista do Brasil só vê desgraças quando olha para a UE e o seu Estado social. A crítica chega ao ponto de denunciar as políticas públicas e o Estado-providência europeu por, alegadamente, terem aberto o caminho para o ciclo neoliberal iniciado na década de 80. É verdade que essas vozes são minoritárias, mas tal leitura contamina o espaço mais amplo da esquerda (incluindo a esfera do PT). Uma leitura em que o espírito crítico “anticapitalista” se confunde com a visão “antiamericana”, “antiocidental” e “antieuropeia”. Se a visão crítica é necessária, o vernáculo “ocidentalofóbico” torna-se doentio, em particular no que toca à questão ucraniana.

Para além do saudosismo dos BRIC, o Brasil quer preservar a sua “neutralidade” na questão da guerra, a fim de ganhar protagonismo, quando chegar a hora das negociações. Creio que L. S. e a sua nova entourage estão atentos à necessidade de alargar e fortalecer a cooperação multilateral, envolvendo também a Europa e os países ocidentais. Mas há uma forte corrente – aliás, com influentes extensões entre nós – que só vê vantagens em privilegiar a China e o mercado sul-americano no novo ciclo económico, virando costas a essa Europa “decadente”, rendida ao poderio americano. É por isso muito importante que a UE e em especial os países ibéricos assumam maior protagonismo na cooperação com o Brasil e a América Latina em geral. É fundamental que as instituições europeias reforcem a sua diferença e autonomia, quer no plano económico quer no plano militar e da soberania face aos EUA.

Os apoios que os países europeus oferecem hoje à Ucrânia, e a sua resistência perante a ameaça russa e as ações criminosas de Putin, constituem uma condição necessária para o fortalecimento da democracia. E as instituições da UE, apesar de todas as suas deficiências e limites, estão a oferecer à Ucrânia e ao mundo não apenas armas e poder bélico para expulsar o invasor. Estão também a assegurar condições para que os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito ganhem a atual guerra global contra o despotismo de extrema-direita e o populismo neofascista que grassam hoje em todos os continentes, e de que o líder russo é um deplorável representante.

É claro que o neoliberalismo e o capital financeiro que alimenta as elites ganhadoras à custa da espoliação e das gritantes desigualdades sociais no mundo deve ser energicamente combatido. Por isso, a esquerda e os movimentos sociais (no campo laboral, na defesa do ambiente, no combate ao preconceito racial e outras formas de exclusão, na denúncia das responsabilidades históricas do colonialismo, etc.) ocupam um lugar central no despertar da sociedade civil global.

Perante as atuais ameaças, o Brasil e a América Latina oferecem-se como um imenso potencial de diversidade multicultural e imaginação para uma ecologia dos saberes, de que o mundo democrático tanto necessita. Espera-se para tanto que a Europa e os países ibéricos – devido ao legado colonial e à sua própria condição semiperiférica – saibam reverter a sua responsabilidade histórica em novas linhas de cooperação solidária com a América Latina, ao encontro de um desenvolvimento sustentável, fundado em valores progressistas comprometidos com a paz e a emancipação dos povos.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
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