A ortodoxia é um conceito teológico que designa um conjunto de crenças, ideias, normas, tidas como as únicas verdadeiras e legítimas. O poder de uma dada religião manifesta-se pela sua capacidade de definir a doutrina ortodoxa e de sancionar os que a não reconhecem e dela se apartam, os hereges. Em princípio, o conceito de ortodoxia não se aplica na ciência, na arte, na filosofia ou na política, uma vez que, em qualquer destes domínios, o objectivo que se pretende alcançar, seja ele a verdade, a beleza ou a justiça e bem comum, é um ponto de chegada que se atinge por via de uma pluralidade de caminhos e processos. Na ortodoxia, por outro lado, esse objectivo é o ponto de partida para todos os que a ela se submetem. Na raiz do conceito de ortodoxia está a sua contradição com a relação entre verdade e liberdade. Se a busca da verdade pressupõe a liberdade, a ortodoxia, ao recusar a liberdade, não tem a ver com a verdade, mas sim com lealdade e submissão. A imposição ocorre para conferir estabilidade e continuidade a uma dada religião. Surge, por isso, sempre muito depois da morte do fundador, por iniciativa dos seus seguidores, preocupados em manter a pureza da mensagem inicial e de a defender de adulterações posteriores.
No nosso tempo, assistimos a um movimento contraditório no que respeita à ortodoxia. O primeiro movimento vai no sentido da perda de força do conceito de ortodoxia e, consequentemente, do conceito de heresia. Com excepção de alguns sectores do islamismo mais radical e do evangelismo neopentecostal, a ortodoxia religiosa tem cedido o terreno a movimentos seculares, como a separação entre a igreja e o Estado, e a crescente importância da ciência, a valorização da liberdade e da autonomia pessoais e o impacto fragmentador das redes sociais. Prova disso é a nova teologia não confessional que, de maneira crítica e correctiva, oferece novas interpretações da fé mais consentâneas com a condição humana. O segundo movimento, em sentido contrário, consiste nas metamorfoses contemporâneas da ortodoxia, ressurgindo em outros domínios que não o religioso. Claro que a prevalência de certas ideias, por maior que seja, não constitui sem mais ortodoxia. Para se poder falar de ortodoxia é necessário que se preencham três condições: (1) um conjunto de ideias ou crenças tidas como as únicas válidas e legítimas; (2) um centro ou grupo, difuso ou concentrado, com poder para fazer prevalecer essas ideias; (3) a ameaça sentida pela discordância de tais ideias ou crenças é de tal ordem que não basta refutar com êxito a dissidência, é necessário eliminar ou neutralizar o dissidente. A ortodoxia implica sempre a magnificação do perigo para a sociedade no caso de as ideias que consagra serem postas em causa. À luz desta definição, pode duvidar-se que nas sociedades democráticas de hoje seja possível a ortodoxia. Há consensos amplos, há divergências intensas, mas em nenhum caso se preenche a terceira condição (eliminação ou neutralização da dissidência). Esta condição está hoje presente no radicalismo islâmico, no hinduísmo radical (Hindutva), tal como esteve no passado no nazismo, no estalinismo, no fascismo, enfim nas teocracias e ditaduras de diferentes tipos.
As ideias ortodoxas
As ideias que podem candidatar-se à ortodoxia são aquelas que convencionalmente se designam por ideologia. A ideologia é todo o conjunto de ideias e crenças que, embora nascendo do pensamento livre, evolui para o limitar. Isso ocorre quando as ideias deslizam gradualmente da reivindicação de serem verdadeiras (e nessa medida merecerem consenso ou serem refutadas) para a reivindicação de exigirem lealdade incondicional (e nessa medida, imporem obediência estrita). A ortodoxia diz respeito tanto à manifestação de ideias como a comportamentos que revelem a vigência e observância das ideias. As ortodoxias podem ter várias escalas (globais, nacionais, locais) e cobrir áreas temáticas específicas. Na Idade Média foram religiosas, mas o seu modus operandi não está limitado à religião. Identificar as ideologias candidatas ao estatuto de ortodoxia no nosso tempo exige uma complexa arqueologia do presente. Entre várias outras, identifico três fortes candidatas: a ortodoxia da segurança nacional, a ortodoxia político-financeira e a ortodoxia tecno-futurista. Por enquanto, são para-ortodoxias, mas a pulsão que as anima faz prever que se transformem em ortodoxias.
A ortodoxia da segurança nacional. Consiste nas ideias e práticas que se consideram fundamentais para salvaguardar a comunidade política. O sistema de Estados modernos assenta numa competição inter-estatal, muito intensa e potencialmente hostil, em que a segurança nacional se considera permanentemente ameaçada. A máxima importância das ideias e procedimentos que presidem à segurança nacional mede-se pelo sigilo que as rodeia (como o segredo de Estado) e pelos testes de confiança e disciplina a que são submetidos os técnicos e políticos encarregados de salvaguardar os níveis mais altos da segurança.
A ortodoxia político-financeira. Esta ortodoxia está no coração do neoliberalismo. À medida que os Estados nacionais deixaram de poder cobrar impostos a quem mais podia pagá-los e tiveram, por isso, que contrair empréstimos nos mercados financeiros globais para poder financiar as políticas públicas, o pagamento dos juros e da dívida transformou-se num novo determinismo que não pode ser desafiado sob pena de se pôr em causa a sobrevivência de quem o desafia. Este determinismo aplica-se tanto aos Estados como às famílias.
A ortodoxia tecno-futurista. Esta ortodoxia é a mais complexa do nosso tempo em face das suas múltiplas dimensões. Afirma-se como imperativos cuja contestação envolve sérios riscos. Os três principais são o imperativo tecnológico, o imperativo digital e o imperativo biotecnológico. Em qualquer dos casos, a inovação em desenvolvimento compele os utilizadores a depender fielmente do desenrolar da inovação sem olhar às consequências éticas, sociais ou psicológicas que dela possam decorrer. O imperativo tende a criar o seu próprio universo normativo e a impô-lo com a força de um determinismo cujo questionamento ou recusa suscita o caos e remete quem resiste ao ostracismo radical, no sentido de ser colocado não só fora da sociedade como fora da história.
O núcleo de poder. O poder que preside às ortodoxias do presente é tão diverso quanto as próprias ortodoxias. No caso da ortodoxia da segurança, o poder é o núcleo civil-militar do Estado. No caso da ortodoxia político-financeira, o poder reside no capital financeiro global que, por sua vez, está concentrado em meia dúzia de corporações financeiras. O poder da ortodoxia tecno-futurista opera de forma ainda mais difusa que a ortodoxia financeira (sistema tecnológico, ciberespaço, web, fronteira biotecnológica); mas, como é um sistema proprietário (regulado por direitos de patente), tem uma cúpula de controle tão poderosa quanto obscura.
A eliminação/neutralização. A ortodoxia pode ser violada por indivíduos, grupos sociais ou países. Os mecanismos para controlar e punir a dissidência são extremamente fortes. Distingo dois: declaração e punição de heresia e rendição ou capitulação. Qualquer deles é accionado segundo a lógica de que os princípios normativos gerais por que se rege a sociedade podem ser suspensos para enfrentar a dissidência. A declaração de heresia é o instrumento mais contundente de eliminação ou neutralização. A denúncia da heresia comporta, em geral, o insulto organizado, a distorção intencional das ideias e a invenção de uma conspiração sobre os motivos do herege e seus comparsas. Tudo isto é feito em nome da salvaguarda de interesses vitais e supostamente colectivos da sociedade, sobretudo quando as ideias heréticas se traduzem em comportamentos individuais ou colectivos. A neutralização envolve medidas violentas, tais como eliminação física, punição extrema, silenciamento, ostracismo, cancelamento, demonização, deportação. Qualquer que seja o domínio, da arte à política, da economia ao direito, o objectivo é transformar o herege num pária. Reciprocamente, quando o herege não é eliminado prontamente, e sobretudo quando obtém adesões de outros às suas ideias e persevera nas suas ideias e nos comportamentos correspondentes, a heresia torna-se uma forma eficaz de resistência contra a ortodoxia e o poder que a sustenta. Historicamente, tem sido uma importante alavanca de transformação social. Hoje, seria a versão secular da blasfémia.
No caso da ortodoxia da segurança nacional, o herege paradigmático do nosso tempo é Julian Assange, condenado à morte cívica e eventualmente à morte física. No caso da ortodoxia político-financeira, o Haiti pode ser considerado o grande herege dos últimos duzentos anos. Uma colónia francesa desde o século dezassete, o Haiti ousou declarar unilateralmente a sua independência e abolir a escravatura em 1804 (o primeiro país a fazê-lo no hemisfério ocidental). A pesadíssima dívida punitiva que lhe foi imposta e os embargos de que foi vítima inabilitaram o país para colher os frutos da sua ousadia, um preço que paga até hoje. No nosso tempo, os países que, por qualquer razão, não pagam as suas dívidas estão sujeitos a punições gravíssimas (perda de crédito, especulação financeira, embargos e sanções, etc.). No caso das famílias endividadas, a insolvência pode significar o colapso da vida familiar ou o despejo. A ortodoxia tecno-futurista pode ser desafiada pela rejeição do imperativo tecnológico, digital ou biotecnológico, e pode consistir em abandono ou em resistência. No primeiro caso, as consequências da auto-expulsão são graves sempre e quando o imperativo tenha, entretanto, penetrado em recursos fundamentais para a sobrevivência e tenha eliminado todos os recursos alternativos pré-existentes. Pode significar perigo de vida. A resistência assume diversas formas e a mais importante é a dos hackers. Os hackers desafiam o imperativo digital a partir de um profundo conhecimento do campo que lhes permite fazer escolhas tecnológicas à revelia dos proprietários ou utilizadores e causar-lhes danos graves. Sempre que isto ocorre, os hackers, quando detectados, sofrem pesadas punições que os podem inabilitar para a convivência colectiva (pode vir a suceder com Rui Pinto).
Para além da denúncia de heresia, as ortodoxias também se fazem prevalecer por meios que, na aparência pelo menos, podem considerar-se menos violentos. São eles a rendição ou capitulação (que, por vezes inclui a lavagem ao cérebro). A rendição corresponde à apostasia no campo da religião e consiste em renunciar ou abandonar as ideias ortodoxas e desistir dos comportamentos correspondentes. Normalmente é acompanhada pelo silêncio auto-imposto. A rendição é muitas vezes acompanhada do sentimento de ser uma derrota tanto frente a um inimigo externo como frente a um inimigo interno, a pessoa que se rende.
Talvez, por agora, seja mais correcto falar de sintomas ou indícios de ortodoxia. No entanto, à medida que se intensifica o pensamento único e a disciplina actua por via da anulação tanto de comportamentos desviantes como dos seus protagonistas, torna-se visível a pulsão de construir ortodoxias e, por implicação, heresias. É concebível que isto ocorra em sociedades democráticas? A democracia corre um risco existencial com o avanço destas e de outras ortodoxias?