Visitas aos museus desvelam histórias marcadas por violência e dominação culturais. Suscitam sérias dúvidas com relação ao modelo de sociedade que construímos. Essa civilização tecnológica baseada na adaptabilidade dos mais fortes (leiam-se, ricos) para sobreviver frente às idiossincrasias de um sistema voltado à exploração/exclusão de menos aptos (os inelegíveis no processo de “seleção natural”). Em outras palavras, os 99% da população (David Graeber) que, sob a égide do determinismo progressista, confirmam o adágio teleológico de que o progresso culmina em nós, não o inverso.
Macabra realidade capitalista. A história é transmitida por vitoriosos em luta constante. Como assevera Walter Benjamin, a identificação afetiva ocorre sempre em proveito de vencedores que carregam consigo os espólios de guerras no cortejo triunfante (Tese VII, 2020). Esses espólios, os bens culturais obtidos por meio de barbárie extrema, são peças valiosas em museus, mas não substanciais para formação das sociedades contemporâneas se os “derrotados” da História são silenciados, esquecidos e apagados.
Para ilustrar tais argumentos, em visita ao museu do Louvre nos deparamos com a angustiante imagem da Balsa da Medusa. Pintado por Théodore Géricault em 1818, retrata o naufrágio da fragata francesa – curiosamente com o nome da mais conhecida górgona da mitologia grega – na costa do Senegal. É importante relatar que o objetivo da viagem era consolidar o colonialismo francês em território africano. Aprioridade de salvaguarda limitou-se aos nobres e burgueses presentes na “expedição”, que apesar das inúmeras dificuldades foram todos salvos. O mesmo não ocorreu com 149 marinheiros e soldados (de baixa e média patentes) que foram deixados à própria sorte em uma balsa de não mais de 20 metros.
Óbvio ululante, após treze dias em que a condição humana foi levada ao limite, inclusive com atos de canibalismo para retardar a morte inevitável, apenas 15 tripulantes foram resgatados com vida. Géricault denunciou em suas pinceladas o dialético sentimento entre a agonia da humanidade e o êxtase da libertação. A narrativa de uma tragédia anunciada é, contudo, evitável se a igualdade for considerada o valor supremo.
Passados mais de dois séculos, o alerta de Géricault continua a questionar a mercantilização da Vida. Afinal, se todo documento de cultura é, ao mesmo tempo, um documento de barbárie (Walter Benjamin), precisamos romper com essa transmissão histórica da estupidez humana para dissipar as representações culturais petrificadas em nossas almas. Se a salvação é possível, será que basta cortar a cabeça da Medusa? Ou sentido e conceito podem proclamar artes como expressões da diversidade humana?