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03-01-2023        Público

Como no comentário político, bem como nas direcções de informação, dominam opiniões alinhadas com a direita, seja ela moderada ou extrema, era previsível que os problemas do actual Governo se transformassem num festim crítico-orgiástico de fim de ano.

De repente, o primeiro-ministro, que presidiu ao Governo de um dos países com melhor desempenho na protecção da vida durante a pandemia, não sabe governar, está à deriva e o seu executivo perde na comparação com todos os governos passados. Um circunspecto analista dá a entender que, se o Presidente da República não se chamasse Marcelo Rebelo de Sousa, este Governo já estava demitido. A prova da incompetência mede-se pelo número de demissões de governantes, mesmo que duas delas tivessem tido razões de força maior ou de elementar bom senso, bom senso que se deve esperar tanto dos políticos como dos comentadores que os julgam. Talvez o efeito mais preocupante da sanha mediática contra o Governo seja negar qualquer visibilidade ao bom trabalho que muitos ministros estão a fazer e que, por ser um bom trabalho, não resulta em boas notícias no plano jornalístico.

Dito isto, há que reconhecer a existência de problemas neste Governo e a necessidade de o primeiro-ministro dar um murro na mesa antes que um qualquer outro murro faça boomerang e o atinja a ele. Mas o que ele pode fazer tem menos que ver com escolhas de pessoas do que com escolhas de políticas. Limito-me a duas escolhas fatídicas entre muitas outras. A nossa classe política é o espelho de uma sociedade que nunca investiu na educação nem na ciência. É, em geral, ignorante, pensa pequeno, teme riscos e protege-se no círculo de amigos, parentes e cúmplices para não ter de se confrontar com o novo, o desafiante, o exigente. Em vez de se preparar para correr, está preparada para o corrente. Isto vale para todo espectro político. Nunca investimos na educação e na investigação científica, como era exigível para recuperar o atraso histórico de 48 anos de ditadura. Os fundos europeus dos tempos de Cavaco Silva foram uma oportunidade perdida e coincidiram com a indução intencional da crise da universidade pública de que esta nunca mais recuperou.

O PRR padece da mesma suspeição, com a agravante de que agora grande parte do dinheiro investido acabará por beneficiar empresas estrangeiras que se aproveitam dos salários baixos praticados no país.

Na educação em geral e na universidade e investigação científica em particular vamos continuar a apostar na precariedade e em salários baixos. Não se espere inovação nem educação de qualidade a quem passa os anos mais criativos da vida a preparar currículos e projectos para concursos de investigação em que, no melhor dos casos, vê o seu mérito reconhecido, mas depara-se com a falta de fundos.

A presidente da FCT vai avisando que não há dinheiro e que o melhor é os investigadores concorrerem a fundos europeus, sem se dar conta de que os fundos nacionais são cruciais para preparar os mais jovens para a alta competitividade internacional. O desânimo na comunidade científica nunca foi tão grande.

Para quem ainda se surpreenda, ao saber que Portugal não só deixou de convergir com o resto da Europa a partir de 2000, mas pode estar mesmo a correr o risco de divergir, deve saber que a razão mais profunda reside aqui. Austeridade e precariedade na educação e na ciência num país como o nosso significa liquidar o futuro.

A segunda escolha política e igualmente fatídica é a composição das forças políticas. A partir de 2016, tivemos uma experiência política de articulação entre partidos de esquerda que teve êxito e que serviu de modelo a outros países. Os protagonistas, em vez de aprofundarem essa articulação e a renovarem, tudo fizeram para a destruir. Na classe política a ignorância toma a forma de ligação atávica a ideias feitas (próprias de um passado que passou) e à incapacidade para analisar criativamente as transformações sociais e não deixar perder oportunidades tão desafiantes quanto difíceis de se repetirem.

Chocaram-se duas ignorâncias atávicas: de um lado, o ranço anticomunista e a saudade de um centrismo que foi sempre a antecâmara de um deslize para a direita; do outro, o dogmatismo e o sectarismo e o fantasma das traições de classe. As duas incapacidades de enfrentar um futuro exigente traduziram-se em dois medos paralisantes, dos quais não podia resultar nenhuma esperança. A maioria absoluta do PS foi a vitória do medo, não a vitória da esperança. E no medo perseveramos.

Quando a classe política é ignorante, só os centristas podem ser radicais. Os outros correm o risco da irrelevância. Ao nosso lado, em Espanha, a lição de Portugal prosperou e os resultados estão à vista. Tanto o PSOE como a esquerda à sua esquerda assumiram riscos sérios, mas a governação subiu de qualidade. A esquerda à esquerda pluralizou-se, o Podemos renovou a sua liderança e emergiu uma das mais promissoras políticas progressistas da Europa, Yolanda Diaz, orgulhosamente galega. E prepara-se uma nova plataforma eleitoral de esquerda com o expressivo nome de Sumar.

Entretanto, a guerra da Ucrânia converteu-se em outra oportunidade perdida para as esquerdas. O PS, enquanto partido de governo, submeteu-se à lógica da Europa como conjunto de Estados vassalos, uma condição que existia desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que agora revelou toda a sua crueldade. Os partidos à sua esquerda renunciaram a um dos seus patrimónios: a luta pela paz e a crítica do expansionismo bélico da NATO. Por estranho que pareça, este património está a ser apropriado pelas forças de extrema-direita. As mais recentes sondagens na Áustria revelam que o partido de extrema-direita (FPO) é, pela primeira vez, o maior partido. E é o partido que se tem distinguido na luta contra a guerra e na necessidade de negociações entre os beligerantes directos e indirectos.

Não é preciso ser sociólogo para prever que, devido ao agravamento das condições de vida das grandes maiorias na Europa, o tema da paz, das negociações, da reconstrução da Ucrânia e das dívidas contraídas pela Europa para financiar a guerra serão os grandes temas dos próximos anos. Não sabemos se a extrema-direita extrairá mais benefícios daí, mas sabemos que a esquerda perdeu, entretanto, todos os que tinha e lhe pertenciam de pleno direito. Atemorizou-se perante os insultos incessantemente fabricados pela guerra de informação em curso e não teve a clarividência de se ancorar no que viria depois. Pagará por isso.


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
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