Uma leitura contemporânea de Medeia pode nos auxiliar a compreender as idiossincrasias da sociedade capitalista (que em sua gênese é masculina, branca e ocidental). Portanto, não estamos a nos pautar na versão clássica do drama euripedeano, mas nos contributos dramaturgos de Consuelo de Castro (1998) e Christa Wolf (1996) sobre a tragédia do amor perdido no dialético manto do ideal traído.
Como sabemos, Medeia é a chave para Jasão obter o velocino de ouro e, com isso, recuperar o trono da Tessália - usurpado pelo tio Pélias. Detentora de conhecimentos inesgotáveis nas ciências naturais e nas ocultas, ela auxilia o herói grego a enfrentar o dragão protetor da invejada relíquia e a sair vitorioso. Em troca, selam o compromisso de fuga (com a proteção dos argonautas) para longe das intrigas palacianas que resultaram em miséria, violência e alienação de direitos.
De acordo com Consuelo de Castro, Medeia é uma humanista libertária que concentra todo o seu vigor ético para alertar-nos que a matriz do poder é a desumanização das gentes por meio da mercantilização da vida. Não importa se na Colquida avassalada pela presunção patriarcal dos seus governantes ou na Corinto onde impera a misoginia. Apenas na superfície, a tragédia trata de amores perdidos, pois a partir do momento em que o herói grego se submete às intrigas do rei Creonte, o destino de Medeia e de seus conterrâneos está traçado. Como salienta Christa Wolf, contra ou a favor de sua vontade, uma mesma ação pode trair ou salvar. Jasão optou pela primeira.
Ao desprezar o contrato firmado com Medeia, ele se deixou cegar pelo efêmero da riqueza em detrimento da fortuna humana. O mesmo que acometeu outro rei (Lear), mas esse marcado por tons shakespereanos da tragédia familiar. Isto porque, em comum, todos os homens são excluídos do mistério de dar a vida. E alguns, como Jasão, encontram na morte daquelas que geram vida a justificação para sua pequenez.
“Oh tessálio, tu és culpado! Não importa o quanto acredites que ela não tinha razão, tampouco que não podias ajudá-la. Tua masculinidade ofende”. O veredito é de Christa Wolf: “Tenho pena de ti, Jasão” (p. 189).
O contestar de Medeia, seu clamor por justiça, continua a ecoar no espaço da incredulidade histórica. “Mas que significa isso, comparado com os horrores do passado com que eles têm de viver?” (p. 204). Afinal, se sob o verniz civilizatório se encontra o interior sanguinário, devemos içar as velas da Argos e partir em busca da humanidade perdida. Por quê? Porque somos incorrigíveis. E, sendo o teatro da vida a nossa consciência da morte, sabemos que o mundo em que habitamos é um imenso palco em crise. Sábias e verdadeiras palavras, Consuelo de Castro!