O Qatar permanece um país não democrático, desrespeitador dos direitos humanos e das minorias e, apesar da boa vontade social da OIT, persiste enquanto espaço de exploração da dignidade e da decência dos trabalhadores.
Desde o dia 2 de dezembro de 2010, pela voz do comité executivo da FIFA, o mundo ficou a saber que o Mundial de Futebol de 2022 teria lugar no Qatar. Passaram 12 anos desde então. Ao longo desse período foram-se assistindo a diferentes tipos de manifestações, onde as suspeitas quanto ao processo de decisão, associado a fenómenos de corrupção e manipulação, se foram combinando com as preocupações críticas de se saber que o Qatar é um país não livre, não democrático e não respeitador dos direitos humanos, como atestam a Freedom House e a Amnistia Internacional, entre outras organizações.
Tornou-se inevitável que a realização do Mundial de Futebol de 2022, no Qatar, deixasse de ser o que devia ter sido - uma comemoração do espírito desportivo - e se tornasse num “fenómeno social total”, revelando as contradições do mundo em que vivemos.
Nele, os interesses geopolíticos e geoeconómicos articulam-se com processos de globalização, os quais, por sua vez, revelam a sua enorme seletividade entre a promoção dos interesses económicos e outros, e a inefetividade dos direitos humanos, e até mesmo onde é possível que as consciências dos grandes decisores considerem a escravatura e os direitos humanos como sinónimos. Não consigo deixar de pensar, e é este o convite que deixo ao leitor, que observemos o Mundial de 2022 como uma caixa de Pandora dos avatares criados entre capitalismo, democracia, globalização e geopolítica, reveladores da “miséria do mundo”, para utilizar a expressão do conhecido sociólogo Pierre Bourdieu.
Destaco, a este propósito, dois planos de análise. O primeiro realça a importância do poder dos não eleitos e das suas consequências à escala global.
Neste caso, como é do conhecimento público e notoriamente anunciado, não podemos ficar indiferentes ao modo como a FIFA e as suas dinâmicas internas estão ligadas a contínuas suspeitas de corrupção e suborno neste processo.
Entre os fenómenos que podem ser dados como exemplo encontram-se a afirmação geopolítica dos países Árabes do Golfo Pérsico, a geopolítica dos grandes negócios financeiros e das energias fósseis e as duvidosas trocas e investimentos que envolveram o nome de Michel Platini e Nicolas Sarkozy, a que acrescem a megalomania das potências locais expressa nos grandes projetos para a região, como é o caso do NEOM e do The Line que propõem uma “revolução civilizacional na experiência do modo de vida urbano”.
Ao associar-se, deste modo ínvio, aos interesses dos negócios e ao poder dos não eleitos, a FIFA ganhou pelas piores razões um lugar no sistema mundial, emparceirando com outros atores globais já conhecidos – mercados financeiros, o império das grandes empresas multinacionais, Banco Mundial, FMI, OMC, etc. - sendo que ao fazê-lo subverte os grandes princípios do espírito desportivo e dos seus valores.
O segundo plano de análise refere-se à situação dos direitos humanos e, muito particularmente, aos direitos humanos do trabalho que se expressam em noções que são frequente, mas também, retoricamente utilizadas, como sejam, a da justiça global laboral, a do Trabalho Digno e a questão das cláusulas sociais.
Em causa estão os direitos fundamentais dos trabalhadores observados do ponto de vista da sua promoção e efetivação, em contraponto aos regimes laborais despóticos, não democráticos e mesmo esclavagistas.
E esta é a perplexidade que nos conduz à situação laboral vivida no quadro do Mundial do Qatar. Este país, em termos laborais, define legalmente um sistema designado por Kafala. Este regime laboral é um sistema legal que permite o abuso e exploração dos trabalhadores migrantes, nomeadamente, através da absoluta precarização das condições de trabalho e controlo pessoal da vida dos trabalhadores.
Entre as medidas colocadas à disponibilidade das empresas contratantes de trabalho contam-se a sonegação dos passaportes, a proibição de deixarem os seus trabalhos, a possibilidade de não ocorrer o pagamento de salários, etc.
Estamos, por isso, no quadro das definições da OIT perante situações de trabalho forçado, ou mesmo escravo. Uma mão-de-obra presa nas rotas e nas redes da emigração que contribui para a manutenção de um moderno sistema de escravatura laboral.
Não pode, por isso, deixar de causar espanto a escolha do Qatar, quando à partida se colocava esta questão crucial no plano dos direitos humanos do trabalho.
É este mesmo problema que é colocado pelos jornalistas Sebastian Castelier e Quentin Muller Marchialy, no livro “Les esclaves de l'homme pétrole” (2022) e quando se sabe que dos cerca de 3 milhões de habitantes apenas 313 mil são qataris. O universo de trabalhadores estrangeiros é imenso e, como sublinha John McManus no livro “Inside Qatar: Hidden Stories from one of the richest nations on earth” (2022), uma das nações com maior PIB per capita do mundo encontra-se, igualmente, numa posição privilegiada para proceder ao abuso e violação massiva dos direitos dos trabalhadores.
Não é possível omitir a informação disponibilizada pelo The Guardian, segundo o qual, desde o início de todo este processo, morreram 6.500 trabalhadores migrantes da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka.
Desta reflexão que proponho ao leitor, tenho sublinhado, como a generalidade dos analistas, a existência de um cenário sombrio no que diz respeito aos valores dos direitos humanos e fundamentais do trabalho, associado ao Mundial do Qatar.
No entanto, estou também ciente de que vários esforços foram desenvolvidos, sendo de saudar o modo como a OIT procurou assumir-se como a consciência social da “miséria do mundo” assente nos grandes interesses e no poder dos não eleitos.
Destaco, por isso, os esforços para mitigar os aspetos mais escandalosos do regime laboral do Kafala como, por exemplo, a liberdade para mudar de emprego, pagamento de salários, saúde e segurança no trabalho, inspeção no trabalho, acesso à justiça, representação dos trabalhadores etc. (cf.
AQUI)
Esta cooperação técnica entre o governo do Qatar e a OIT, tem tido o acompanhamento desta instituição, sendo inegável que os esforços de diplomacia laboral da OIT têm contribuído para a relativização do sistema Kafala.
Contudo, a questão de fundo permanece. Terá valido a pena a escolha do Qatar? E se sim, para quem? Quanto aos ganhadores não há dúvidas - os senhores e instituições da geopolítica dos negócios e dos grandes interesses económicos. Quanto aos perdedores, também não subsistem muitas dúvidas.
O Qatar permanece um país não democrático, desrespeitador dos direitos humanos e das minorias e, apesar da boa vontade social da OIT, persiste enquanto espaço de exploração da dignidade e da decência dos trabalhadores. Esperemos todos que a experiência do Qatar sirva para visibilizar as severas contradições que marcam o nosso tempo, e esperemos também que algum Maquiavel adormecido não se lembre de aproveitar a abertura da caixa de Pandora para proceder à “kafalização” do mundo e dos seus direitos fundamentai