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03-07-2011        Público

Desde a Revolução Industrial que a classe média é considerada importante pelo seu papel na coesão e progresso da sociedade. Mas, nos últimos duzentos anos, a classe média evoluiu de uma realidade conotada com o mundo dos negócios para ser associada, sobretudo no século XX, aos novos empregos "limpos"; (os empregados de escritório ou "mangas de alpaca"; ou "colarinhos brancos";) do sector administrativo e do funcionalismo público. Longe de ser uma realidade estática, esta nova classe média (assalariada) cresceu e readaptou-se à medida que surgiram novas profissões, se expandiu a educação e cresceu o sector dos serviços e do Estado. Com isso reforçou-se o princípio de que quanto mais "avançada";, "moderna"; e "desenvolvida"; fosse uma sociedade, mais forte e pujante seria a sua classe média. Isto segundo o paradigma positivista. Porque segundo as perspectivas mais críticas do capitalismo (sobretudo o marxismo), a classe média é sinónimo de "emburguesamento";, individualismo e adesão total ao status quo. O tema é portanto controverso, sendo, todavia, consensual que a classe média é internamente diversificada, complexa, instável e cada vez mais segmentada.

Trata-se de uma categoria definida por negação. É ambígua: refere-se ao que está "no meio";, e ao mesmo tempo ao que "sobra";; o que não é parte da elite nem da classe trabalhadora manual. Raramente se pensou que a classe média se defi ne não só pela riqueza (ou nível de rendimentos), mas também pelos seus níveis de educação, estatuto, capital cultural e redes sociais onde circula. E é sempre pensada no quadro da família. É pela forma como se combinam esses diferentes recursos entre si e como se estruturam em diversos estilos de vida e padrões de consumo que se estabelecem segmentos diferenciados no seio da classe média. Há uma enorme diferença, por exemplo, entre um "novo-rico"; e um "aristocrata em declínio";, ou entre um "pequeno agricultor"; e um "professor do ensino secundário";, apesar de todos pertencerem à "classe média";. Embora sendo um saco demasiado largo e heterogéneo (nunca foi uma verdadeira "classe";, com identidade própria), a designação vulgarizou-se e tornou-se parte integrante do imaginário das sociedades. Funcionou como um referente, que acicatou a mobilidade social ascendente ou mesmo a ilusão de mobilidade.

Em Portugal, desde a década de 80, muitas famílias trabalhadoras que se concentraram nos principais centros urbanos alcançaram empregos burocráticos e deixaram-se seduzir por um desenfreado "fetichismo"; promovido pela "cultura do shopping";, aderindo com isso à ideia de que estavam a entrar na classe média. Foi sem dúvida uma enorme fantasia, se bem que muito poderosa e com consequências práticas, que resultou numa ideologia consumista, fundada num aparente desafogo económico, num imaginário status "superior";, que contribuiu para aumentar o individualismo, a apatia política e o endividamento, como agora se percebe. As expectativas elevadas, em especial quando não são sustentadas por recursos sólidos, podem desmoronar-se repentinamente, causando frustração, revolta e às vezes conflito.

E sabemos bem que a classe média portuguesa vive hoje à beira de um empobrecimento compulsivo. Ainda que em geral seja passiva e adira à ordem vigente, diversos segmentos dessa classe já deram provas de poder insurgir-se e alimentar revoluções contra o sistema. Ao longo da História, sectores escolarizados (e intelectuais) da classe média, negando a sua condição de classe, aliaram-se ao operariado e ao povo, assumindo-se mesmo como sua "vanguarda"; e mobilizando-o contra a ordem estabelecida. 

Em suma, a classe média é um "campo"; muito vasto e dividido, contendo em si um potencial que tanto pode reforçar o sistema como fazer-lhe frente. Tanto pode aderir às reformas estruturais como defender a todo o custo aquilo que existe. Tanto pode dar lugar a movimentos de cariz corporativista como suscitar novos radicalismos e formas de rebelião social.


 
 
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Elísio Estanque



 
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