José Saramago é referência, não apenas literária. Em profunda conexão com os seus romances, crônicas, poesia e dramaturgia não conseguimos dissociar o autor do cidadão de seu tempo. Há uma simbiose entre essas duas personas na qual a responsabilidade ética delineia o caminho. Prêmio Nobel de 1998, esse Novo Quixote seguia confiante em seu compromisso com a formação de consciências críticas para combater as injustiças da sociedade capitalista e despertar nas pessoas a lúcida vontade emancipatória contra toda forma de autoritarismo.
Em 2022, comemoramos o centenário de nascimento do escritor - com intensa programação disponível na webpage da Fundação José Saramago - e, no compasso das efemérides, celebramos a maioridade do “Ensaio sobre a lucidez”, livro de cariz político deste ribatejano nascido em Azinhaga (Portugal).
O cenário é a mesma cidade criada pelo autor para contar a história de uma epidemia. Sob a alegoria da cegueira, título homônimo do ensaio em apreço, Saramago apresenta uma sociedade regida pelo medo, mas sem o desassossego necessário para compreender e suplantar o mal que se estabeleceu com a perda de consciência, de sentido do que é ser humano. Nesta continuação, a lucidez é protagonista de uma pretensa conspiração eleitoral contra a governação vigente: 83% dos votos são em branco e causam muito desassossego aos donos do poder.
Não por escolha irracional de cidadãs/ãos, mas por indignação, a cegueira desabrochou em desconfiança no hoje e germinou incertezas no amanhã. As lideranças políticas, em reação ao ato anárquico que desestabilizou o governo, acentuam nas violências e nas mentiras sua contraposição à lucidez. É neste presente contínuo que Saramago questiona a alegoria do poder, que sob vestes da violência não respeita os direitos fundamentais e se dissolve nas atrocidades perpetradas contra a humanidade. Assim, ao inquirir se restará vestígios de esperança nos escombros da sociedade capitalista, busca exprimir sua fé na ação transformadora das gentes ao conjugar participação cívica e reflexão democrática a respeito do Mundo que ajudamos a construir, destruir e, quiçá, reconstruir.
Frente aos horrores deste “estado de sítio”, Saramago, tal como a mulher do médico, não se permite iludir com as metamorfoses da esperança em distopias. Sabe que “os que mandam não só não se detém diante do que nós chamanos de absurdos, como se servem deles para entorpecer as consciências e aniquilar a razão”. Enfim, que mais nos falta saber para encontrarmos uma saída para esse mundo caótico e injusto? A epígrafe do livro é providencial, pois corrompe o silêncio ao bradar: “Uivemos, disse o cão”.