Os processos eleitorais, mesmo quando muito intensos, como aconteceu recentemente na Colômbia (eleição do primeiro presidente de esquerda na história do país e da primeira vice-presidente negra na história da América Latina) e no Chile (rejeição do projecto da nova Constituição que substituiria a actual, herdeira da ditadura de Pinochet), não costumam atingir o nível de drama existencial que a democracia brasileira vive actualmente. Esse drama resulta da ameaça que paira sobre a sobrevivência da própria democracia, uma ameaça que decorre das declarações e mobilizações públicas do presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores, pondo em causa a transparência do escrutínio eleitoral, fazendo a apologia de um possível golpe de Estado, com apelos às Forças Armadas para intervir e suspender ou encerrar as instituições democráticas, nomeadamente o Supremo Tribunal Federal, um dos principais garantes da normalidade democrática no actual contexto.
Tudo isso, combinado com um ambiente digital de redes sociais altamente poluído pelas notícias falsas, pelo discurso do ódio e por prosélitos religiosos do apocalipse e da redenção pela tríade Deus, Pátria e Família, tem levado à criação de um ambiente de intimidação que, de algum modo, paralisa a manifestação pública da diversidade das opções políticas e obriga os titulares de cargos superiores do Estado a medidas de segurança inusitadas. Haverá risco de um golpe de Estado no Brasil? Serão pacificamente reconhecidos os resultados eleitorais se contrários aos interesses bolsonaristas? A quem serve a retórica do golpe anunciado e o ambiente de intimidação instalado?
Atrevo-me a identificar vários factores que me levam a pensar que o perigo do colapso da democracia brasileira, embora real, não é iminente. A retórica do golpe é mais eficaz em instalar o medo do que em condicionar opções. Por isso, o medo do golpe funciona sobretudo enquanto golpe do medo. Os factores que me levam a esta suposição são os seguintes. Primeiro, as elites brasileiras, que tradicionalmente se servem da democracia quando esta lhes convém, estão divididas. A parte mais influente delas (o sector financeiro), se não morre de amores por Lula da Silva tão pouco aprecia a boçalidade grotesca (mas carismática) de Bolsonaro. A bolsa de valores já deu sinais no passado de que a perturbação institucional não entra actualmente no modelo de negócios.
Segundo, talvez pela primeira vez na história do continente, os EUA não parecem estar interessados em fomentar a instabilidade democrática ou em influenciar o processo eleitoral. A razão principal é como sempre de política interna. A administração Biden sabe das ligações entre Trump e Bolsonaro e sabe que a extrema-direita global, em grande medida mobilizada a partir dos EUA, vê em Bolsonaro a última esperança de controlar o governo de um grande país e de, com isso, ajudar a manter acesa a chama de resgatar Trump em 2024. Para Biden, deixar cair Bolsonaro é reduzir as possibilidades de Trump o confrontar em 2024. Claro que os interesses geoestratégicos e económicos dos EUA dominam como sempre as opções políticas do big brother, mas neste caso, a influência que tais interesses venham a exercer sobre o governo do Brasil terá de ocorrer depois das eleições e não antes.
Terceiro, as Forças Armadas estão divididas e os sinais que recebem da sua maior referência estratégica (as altas patentes militares norteamericanas) não parecem estimular aventuras golpistas. É certo que as FFAA brasileiras estão hoje envolvidas na máquina da administração pública a um nível sem precedentes (mesmo contando o tempo da ditadura). Calcula-se que cerca de seis mil militares exercem funções civis no sector público. Têm, pois, um interesse na continuidade da governação bolsonarista. Sabem, no entanto, que têm hoje suficiente poder de influência no Brasil para impor algumas condições de continuidade ao novo presidente se ele não for Bolsonaro. E isso é mais económico e eficaz que uma turbulência institucional imprevisível.
Quarto, a extrema-direita brasileira é talvez mais ambígua sobre o processo eleitoral do que se supõe. É costume distinguir entre Bolsonaro e bolsonarismo para significar que a base social do presidente continuará politicamente activa mesmo que Bolsonaro saia de cena. Julgo ser necessário introduzir um terceiro componente: a família Bolsonaro. Bolsonaro tem três filhos com mandatos políticos democráticos: Flavio, senador; Eduardo, deputado federal; e Carlos, vereador no Rio de Janeiro. Qualquer destes políticos pode ser no futuro candidato à presidência da república. A probabilidade de tal acontecer é maior se a normalidade democrática se mantiver. Portanto, o potencial desestabilizador da família Bolsonaro pode estar condicionado por esse cálculo. Reconheço que posso estar a atribuir demasiada racionalidade às decisões desta família, mas a verdade é que mesmo Don Corleone, chefe da máfia nova-iorquina (O Padrinho, 1972, Francis Ford Coppola) , tinha o sonho de o seu filho predilecto (representado de forma memorável por Al Pacino) vir ser eleito governador do Estado de Nova Iorque ou mesmo presidente dos EUA.
Nenhum destes factores toma em linha de conta a determinação das forças democráticas, o apego de altos responsáveis à defesa da democracia mesmo correndo riscos ou ainda o activismo da sociedade civil e a sua disponibilidade para defender activamente a democracia, na rua se tal for necessário. São factores decisivos, mas, neste momento, são tanto indicadores de esperança como indicadores de apreensão. É algo intrigante, mas as forças políticas antibolsonaristas, nomeadamente o PT, não estão a apelar para a mobilização das suas bases de apoio no sentido de ocuparem o espaço público em defesa da democracia. Excessiva confiança nos processos eleitorais? Defensismo autoderrotista perante possíveis reacções da extrema-direita? Medo de se tornar patente a incapacidade de mobilização, incomparavelmente inferior à de épocas passadas não muito distantes?
Por outro lado, a forças que se opõem ao bolsonarismo estão neste momento divididas em três candidatos - Lula da Silva, Ciro Gomes e Simone Tebet. Particularmente em tempo de polarização, a divisão enfraquece e o potencial eleitorado dos candidatos que disputam a alternativa de Lula da Silva pode facilmente migrar para Bolsonaro.
Finalmente, quem acompanhou de perto a orgia eleitoralista de Bolsonaro no 7 de setembro sabe que quem ele convocou eram famílias de classe média e classe média baixa, muitas delas religiosas, intimidadas com a crise económica. Era gente empobrecida ou com medo de empobrecer, intoxicada pela religiosidade reacionária na expectativa de uma palavra de esperança que, entre os candidatos democráticos, só Lula da Silva pode e sabe dar.