A indústria mineira é conhecida por ser uma das mais poluidoras do mundo: a extração e o processamento primário de metais e outros minerais é responsável por 26% das emissões globais de carbono e por 20% dos impactos da poluição atmosférica sobre a saúde humana. Em Portugal, segundo a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), em 2019, os processos industriais de extração e processamento foram responsáveis por 12,1% das emissões. Esta é também das indústrias mais destrutivas para os ecossistemas: juntamente com a agricultura, representa quase 90% da perda global de biodiversidade, já que a larga maioria das regiões mineiras se sobrepõem a áreas protegidas, inclusive a áreas da Rede Natura 2000. Para além disso, de acordo com o Índice de Mineração Responsável de 2020, a larga maioria das empresas analisadas ficam consideravelmente aquém de satisfazer os critérios sociais a que estão obrigadas, nomeadamente a promoção do bem-estar da comunidade, a garantia de condições dignas de trabalho, e o fomento de práticas ambientalmente responsáveis. Esta é ainda a indústria mais mortífera do mundo para aquele/as que a ela se opõem: 50 dos 212 defensores ambientais assassinado/as em 2019 estavam em campanha para impedir projetos de mineração.
Como por magia, esta, que é das indústrias mais poluentes, mais destrutivas e mais irresponsáveis do mundo, é agora parte das soluções de combate às alterações climáticas! Por forma a obterem a «Licença Social para Operar» 1, as elites políticas e industriais têm vindo a equacionar a extração mineira com as tecnologias ditas «renováveis». Foi para isso que se cunhou o termo green mining, que pretende convencer o público de que a mineração pode ser verde. Com tal cenário por pano de fundo, pretende-se desarmar quem argumente em sentido contrário e/ou exprima preocupações sobre as tóxicas e devastadoras consequências da extração mineira. Obter a Licença Social para Operar significa, na prática, conseguir a aceitação das partes interessadas, nomeadamente de quem se opõe aos projetos, bem como do público em geral. A premissa da Licença Social para Operar é a de que as empresas acabarão, inevitavelmente, por iniciar a exploração mineira e que, por isso, as comunidades locais não têm o direito de as impedir.
Por todo o mundo, a indústria mineira, em conluio com as autoridades estatais, tem trabalhado arduamente para assegurar que as comunidades locais não tenham real poder para rejeitar os projetos mineiros, ridicularizando, menosprezando e ignorando a luta das pessoas destas «zonas de sacrifício verde». Em Portugal, a história não é diferente.
Conhecemos vários episódios que incluem a opacidade na comunicação por parte dos poderes públicos a este respeito, ou a sua retórica em torno da inevitabilidade da extração de lítio, cujo propósito é desarmar as populações em luta. É nesse sentido que o então Secretário de Estado Adjunto e da Energia qualificou de «estrume» e de «coisa asquerosa» o episódio realizado pelo programa Sexta Às Nove, da RTP, no qual foram expostas «as ligações locais, os favores e a “fachada” ambientalista do negócio do lítio». Numa tentativa de subverter as legítimas inquietudes das populações locais, João Galamba chegou ainda a pegar no mote da luta contra a mineração e a invertê-lo, alegando que «quem está contra as minas está contra a vida».Esta frase foi emblematicamente pronunciada no final da Cimeira Europeia sobre Green Mining, onde representantes dos Estados-membros da UE dialogavam com representantes de empresas mineiras, e às portas da qual se faziam ouvir vozes de protesto, convenientemente impedidas de nela participar. Esta Cimeira foi um exemplo claro da estreita ligação entre autoridades políticas e lobbies mineiros e da sua sobranceria e desprezo por quem luta pelo direito a decidir sobre o seu futuro. Também na arena jornalística se procura descredibilizar as populações em luta, rotulando-as de “ocas”, “egoístas” e “moribundas” 2, ou concedendo publicidade às empresas mascarada de entrevista 3 e/ou em forma de artigos de opinião 4.
Com truques de ilusionismo deste tipo — alinhando a narrativa política oficial aos interesses da indústria mineira —, vão-se criando as condições de aceitabilidade social de megaprojetos extrativistas. Em Trás-os-Montes, na região do Barroso, as companhias mineiras têm feito (quase) tudo para obter a Licença Social para Operar. No Barroso, nos municípios de Boticas e de Montalegre, a britânica Savannah Resources e a portuguesa Lusorecursos Portugal Lithium querem abrir, respetivamente, a «Mina do Barroso» e a «Mina do Romano». As empresas forçam a sua presença nesta região, criando ou fazendo uso de intrincadas teias jurídicas que confortam as suas pretensões, infiltrando-se no tecido social rural, de modo a minar a oposição às minas e a fabricar a aceitação dos seus projetos mineiros.
Emaranhados jurídicos e ilusionismos burocráticos
Em 2006, o Estado assinou um contrato com a Saibrais – Areias e Caulinos, S.A. para concessão de exploração de depósitos minerais de feldspato e quartzo. Este contrato, sob a denominação «Mina do Barroso», previa uma área de 70 hectares para a indústria da cerâmica. Contudo, em 2016, foi assinada uma adenda ao mesmo, onde se previa o alargamento da área da mina e a inclusão do mineral lítio. No ano seguinte, foi assinada uma transmissão deste contrato, passando-o para as mãos da empresa Savannah Resources. Foi assim que, de repente e sem consulta prévia às populações ou autoridades locais, 70 hectares para feldspato e quartzo passaram a quase 600 para lítio.
Em fevereiro deste ano, a Junta de Freguesia de Covas do Barroso (Boticas) intentou uma ação judicial contra o Estado contestando a forma como a transmissão contratual fora feita, argumentando que este processo «viola as normas legais». Por um lado, argumenta a Junta, a concessionária tem a «obrigação legal de executar os trabalhos de exploração de acordo com a Declaração de Impacto Ambiental» emitida anteriormente (que previa a exploração de feldspato e quartzo e não de lítio). Por outro lado, o alargamento da mina no âmbito de «uma concessão para um mineral que nunca esteve na origem da concessão (…) viola direitos de terceiros».
Para além da transmissão contratual ter sido feita, possivelmente, de forma ilegal, a APA está, de momento, a ser investigada pelo Comité de Conformidade à Convenção de Aarhus 5. Em causa está a recusa da APA em divulgar informações e a negação de acesso a documentos relativos ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da «Mina do Barroso». A queixa, feita pela ONG galega Monteescola, recebeu um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Apesar deste parecer, a APA não chegou a disponibilizar a informação ambiental, pelo que o Comité de Aarhus prossegue, até hoje, com as suas audições. Embora ainda sob investigação, este processo é sintoma da forma como a participação cidadã em matérias ambientais — dependente do livre acesso à informação — foi altamente condicionada.
Vinte quilómetros a norte de Covas, em Morgade (Montalegre), a história é muito semelhante. A 28 de março de 2019, o Estado celebrou um contrato de concessão para exploração de lítio, por 35 anos, com a empresa Lusorecursos Portugal Lithium, S.A. Esta empresa foi criada apenas três dias antes da assinatura do contrato por Ricardo Pinheiro, um dos acusados da maior fraude com fundos comunitários de que há memória em Portugal. Ora, a legitimidade deste contrato está desde então a ser investigada em tribunal, pois fora uma outra empresa — a Lusorecursos S.A., da qual Ricardo Pinheiro também era sócio — a ganhar os direitos à concessão, já em 2012. Como os prazos em matéria de transmissão contratual já estavam caducados, os direitos de exploração emergentes só poderiam ter sido requeridos pela Lusorecursos, e não pela Lusorecursos Portugal Lithium, S.A.
O contrato de concessão celebrado com esta última definia um prazo máximo de dois anos para a empresa “elaborar e obter a aprovação do EIA”, sendo que o não cumprimento deste prazo “implicava a rescisão do contrato por parte do concedente”. O então Ministro do Ambiente chegou mesmo a sublinhar a “falta de profissionalismo” desta empresa pelos seus sucessivos atrasos. De facto, o EIA relativo à ‘Mina do Romano’ apenas foi entregue em fevereiro deste ano. Ora, embora todos os prazos tivessem terminado há longo tempo, este foi aceite e submetido a consulta pública. Tal como para a ‘Mina do Barroso’, a APA inicialmente propôs um prazo de apenas 30 dias para a consulta pública das mais de 2.000 páginas — no caso da ‘Mina do Barroso’, eram mais de 7.000 páginas! Mas, em ambos os casos, graças às pressões das populações e associações locais, os prazos foram alargados.
As populações de Boticas e de Montalegre demonstram-se ainda preocupadas pelo facto de nenhuma destas empresas ter qualquer histórico de mineração — a Savannah, aliás, é uma empresa de bolsa —, o que levanta sérias dúvidas sobre as suas capacidades de execução. Para além disso, as populações ressaltam que ambos os EIA foram realizados sem que as empresas tivessem tido acesso aos terrenos, já que não tinham licença para tal. Um EIA é um documento que a empresa mineradora tem de entregar ao Estado, no qual se elencam as vantagens e desvantagens de dado projeto. Entregue o EIA, a Comissão de Avaliação da APA declara-o «conforme» ou «não conforme». Como se não fosse suficiente o EIA ser da responsabilidade da própria empresa que quer minerar, o facto de, nestes casos, os documentos terem sido elaborados sem acesso aos terrenos levanta sérias dúvidas sobre a credibilidade e validade dos mesmos.
Nesta complexa teia de emaranhados jurídicos e de obscuros procedimentos técnico-burocráticos, a Academia também aparece a cumprir, em alguns casos, um papel de legitimação social do extrativismo. A Associação Cluster Portugal Mineral Resources 6, cujo objetivo é a «promoção do conhecimento e a valorização económica sustentável dos recursos minerais», tem como sócias várias Universidades e Institutos Politécnicos ao lado de uma série de empresas mineiras, entre as quais a Savannah e a Lusorecursos. A Universidade do Porto é um exemplo particularmente emblemático das estreitas ligações entre lobbies mineiros e instituições académicas 7. A sua Faculdade de Ciências (FCUP) faz parte do consórcio encabeçado pela GALP para a «Mina do Barroso»; assinou, em 2018, um acordo de cooperação com a Savannah; e foi paga pelo Município de Montalegre para realizar um parecer técnico ao EIA da Mina do Romano, ao mesmo tempo que a sua Faculdade de Energia (FEUP) fez parte da Comissão de Avaliação deste EIA. Por outras palavras, a mesma Universidade (embora representada por diferentes Faculdades) está encarregada de avaliar o EIA e de emitir um parecer técnico sobre o mesmo, sendo simultaneamente parte integrante de uma Associação que tem como fito valorizar economicamente os recursos minerais. Não estaremos aqui perante um conflito de interesses?
Em suma, os trâmites seguidos por estes dois contratos de exploração mineira são questionáveis: transmissões contratuais sujeitas a investigação em tribunal; negação de acesso a documentos; criação de empresas de véspera, sem qualquer experiência prévia; possíveis conflitos de interesses, etc. A estes procedimentos junta-se a retórica da inevitabilidade da transição energética — e consequentemente da extração de lítio — que permeia os discursos políticos e mediáticos. Tudo isto, podemos argumentar, constitui uma forma de «violência burocrática», já que estes mecanismos contribuem ativamente para excluir as comunidades dos processos de participação e de construção do conhecimento, descredibilizar as resistências e oposições aos projetos, destituindo, assim, as populações em luta de real poder decisório e negando-lhes o seu direito a dizer «não!».
Embora presas nestas complicadas teias, as populações locais continuam a resistir ao desenvolvimento destes projetos mineiros. Perante a oposição reiterada das comunidades, as companhias mineiras têm orquestrado insidiosas estratégias de «engenharia social». Com efeito, o extrativismo depende não só de uma avançada engenharia física (máquinas, conhecimento técnico e tecnológico) mas também de técnicas de engenharia social. Por forma a obterem a Licença Social para Operar, as companhias mineiras têm tentado manipular os comportamentos, atitudes e perceções da população rural, por forma a manejarem (e, portanto, controlarem) as dissidências e manufaturarem o consenso em torno dos seus projetos.
Dispositivos de engenharia social
Nas aldeias de Covas do Barroso, Romainho, Muro e Couto de Dornelas — que serão particularmente afetadas pela «Mina do Barroso» caso esta avance —, a empresa Savannah Ressources tem procurado estabelecer «boas relações» com a comunidade. Ou, visto de outra perspetiva, tem procurado pacificar e domesticar a resistência.
É nesse sentido que em 2018 a empresa abriu um «posto de informação», no centro de Covas, estabelecendo, assim, uma presença permanente nesta aldeia. Aberto de segunda a sexta, nele podemos ver uma maquete do projeto, projeções de como serão mitigados os impactos da mina, e ainda amostras dos minerais que pretendem extrair e suas futuras aplicações. Além disso, todos os meses, a população recebe uma newsletter, onde a empresa promete mundos e fundos — desde empregos a postos médicos —, ou conta as boas ações que tem realizado na e pela comunidade.
Tanto nas newsletters como no seu website oficial, a Savannah apresenta-se como uma empresa «responsável», «verde», «inteligente», que está «permitindo a transição energética europeia», detentora de um projeto de exploração de lítio «muito avançado». É insidioso o discurso corporativo: de forma subtil, a empresa auto-representa-se como necessária — pois é ela quem permite o desenvolvimento da atual transição energética, graças ao estado muito avançado do seu projeto. De forma semelhante, em junho de 2021, esta empresa, relatam alguns habitantes locais, começou a distribuir panfletos na região de Boticas a pedir trabalhadores para a mina. Ora, relembremos: embora haja um contrato de exploração assinado, o EIA ainda não foi aprovado pela APA. Nesse sentido, estes panfletos e o discurso empregue pela empresa funcionam como estratégias de engenharia social, que pretendem convencer as populações da inevitabilidade da aprovação final e posterior desenvolvimento do projeto.
Gulhotina
Fotografia de Sandra Salgado.
Para além disso, numa tentativa de infiltrar (e minar) o tecido social rural, a empresa tem-se aproximado de pessoas mais vulneráveis, oferecendo-lhes apoios materiais. Ao mesmo tempo, a empresa propõe a compra de terrenos a um preço bastante mais elevado que o estabelecido. Esta aproximação às famílias socioeconomicamente mais fragilizadas é uma jogada psicológica da empresa, que lhe permite, progressivamente, «comprar» a sua imagem, legitimando, assim, a sua presença. Como se não fosse suficiente a empresa estar a tirar proveito da debilidade de certas pessoas (estruturalmente precarizadas pela negligência estatal), esta tem igualmente procurado infiltrar-se em certas famílias, fomentando disputas fraternas.
Estas estratégias de engenharia social têm como objetivo dividir a população — seguindo a famosa máxima «dividir para conquistar». Nesse sentido, podemos argumentar que a empresa tem perpetuado uma verdadeira«guerra social». Como relembrado, em tom irónico, por uma pessoa local: «eles [a Savannah] gostam de ajudar os pobrezinhos… que é para depois lhes dar força a eles [à Savannah]!» e conclui «as pessoas estão em espadas uns com os outros (…) isto é só guerra, é só guerra!». É, de facto, uma lenta — mas insidiosa —«guerra social».
Esta «guerra» desenrola-se numa arena extremamente desigual. De um dos lados, há uma miríade de poderosos atores que, de forma mais ou menos direta, trabalha em conjunto para legitimar projetos altamente destrutivos. O governo, as empresas, parte da imprensa (local e nacional) e das instituições de ensino superior têm vindo a criar as condições de aceitabilidade social de megaprojetos extrativistas, como é o caso das minas de lítio. É este vasto complexo financeiro, económico, político, social, científico e tecnológico que permite a reprodução e a expansão da ordem tecno-industrial capitalista. As teias obscuras que ligam instituições políticas, mineiras e académicas; os múltiplos obstáculos colocados aos cidadãos no acesso à informação; a ridicularização das vozes críticas; o uso de propaganda; as operações de divisão psicológica; a promessa de criação de empregos e de desenvolvimento socioeconómico — todos estes mecanismos burocráticos, técnicos e científicos servem para manufaturar um consenso em torno das soluções do capitalismo «verde» e tornar governáveis quer os recursos naturais quer as pessoas.
Estes instrumentos de persuasão e manipulação (ou, se quisermos, de engenharia social) têm por objetivo disciplinar e encantar os «corações» das populações, funcionando, assim, como dispositivos de pacificação e de domesticação de qualquer dissidência. Há uns anos, no Natal, a Savannah Resources chegou mesmo a oferecer um bolo-rei a todos os residentes, numa tentativa de adocicar a resistência. Mas, como diz o ditado, «com bolos se enganam os tolos». A população barrosã, na sua maioria, não se deixa enganar e está determinada a lutar até ao fim para proteger os rios, as florestas, as plantas e os animais. Vamos com elas?