O linchamento da ministra Marta Temido - não tenho aqui a pretensão de analisar o positivo e negativo da sua ação - foi trabalhado ardilosamente, num quadro em que o Governo devia estar a implementar a nova Lei de Bases da Saúde, a negociar com os sindicatos as carreiras dos seus profissionais, a reforçar o investimento no setor, a corrigir decisões erradas em que se deixou envolver na gestão das urgências ou da organização do subsetor da Obstetrícia.
O "Expresso" noticiava, no passado dia 27, que "Marcelo Rebelo de Sousa entende que a conceção orgânica em causa é "inexequível" e "não é solução", "não vai dar certo", confirmam do Palácio de Belém". Num outro plano, o setor privado e falsos amigos do SNS, como o PSD, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros e o bastonário da Ordem dos Médicos (para quem o Governo não tem legitimidade porque lhe falta apoio de uma maioria silenciosa que pretensamente pensa como ele), todos os dias ampliam bloqueios e insuficiências para consolidar na sociedade a ideia de caos. E, durante os últimos meses, o primeiro-ministro tem assistido passivamente a tudo isto, não se tem batido pelo reforço do SNS e esqueceu-se de ser solidário com a ministra.
Grandes meios da Comunicação Social ressuscitam velhos inimigos do SNS e descobrem novos especialistas, desde que sejam defensores do "papel de relevo a atribuir ao setor privado" (que se instalou e cresceu parasitando o Orçamento do Estado e o da ADSE) e da "desideologização" do SNS. A este propósito relembro o presidente Jorge Sampaio, no palco de uma iniciativa em que estávamos os dois. Perante um "jornalista" que, para se credibilizar, lhe dizia "eu não tenho ideologia", Sampaio sussurrou-me, "este ou é burro ou para lá caminha" e, de imediato, passou a explicar-lhe que todos devemos ter e afirmar quadros de valores e que é isso a base da ideologia.
O SNS foi, talvez, a realização mais conseguida da nossa democracia. Isso aconteceu, não porque fosse consensual entre todas as forças políticas e sociais a sua realização, mas sim pela dinâmica gerada, pelo engajamento do poder local democrático, pela proximidade e envolvimento dos cidadãos. É verdade que algumas destacadas figuras do PSD apoiaram o SNS, mas esse partido e a Direita votaram contra a sua criação e, amiúde, lançaram iniciativas legislativas para o descaraterizar. Relembremos também que, entre 1977 e 1986, o então bastonário da Ordem dos Médicos tentou mobilizar a "classe" contra o SNS. Isto significa que os campos políticos e as figuras envolvidos no ataque de hoje não são novidade. Novo e mais complexo é o contexto. A saúde é cada vez mais uma enorme área de negócios. E estamos num cenário político muito particular.
A Direita, acantonada na sua condição de minoria, manobra para que o Partido Socialista (PS) execute o seu programa, tendo Marcelo e a Presidência da República como padrinhos e impulsionadores do objetivo. Trata-se de um perigo real, até porque no PS vai ganhando ânimo o setor rendido ao neoliberalismo.
António Costa cede as capacidades e responsabilidades de governar? A maioria PS credibiliza a intervenção abusiva do presidente em importantes funções executivas e legislativas do Estado, que não lhe pertencem? Vamos passar a ter um executivo bicéfalo Marcelo/Costa? Este acredita que não haverá problemas porque será capaz de superar o professor? São enredos perigosos.