Ainda que me veja morando a 300 metros do coração de Dom Pedro (I no Brasil, IV cá) noto um silêncio omnipresente no Brasil sobre o bicentenário da independência. Questionam-me os amigos portugueses do porquê. Digo que é porque no Brasil de 2022 um menino de 11 anos chama a polícia porque a sua família tem fome. Respondo que neste ano não há nada para ser celebrado – e que só conseguem celebrar o que quer que seja os brasileiros capazes dos maiores cinismos.
A história do Brasil é uma história escrita em sangue, sim, apesar de os malversados (ou mal-intencionados) dizerem ter faltado grande derramamento como ingrediente da formação nacional. É uma história marcada por atrocidades e vivida em grande parte nas sendas do sofrimento. Mas, ainda sob essa análise, há algo no tecido social que, indiscutivelmente, se rompeu nos últimos anos e que troveja em 2022. Quebrou-se uma falsa casca de cordialidade, derreteu-se um barato verniz de solidariedade, desfizeram-se os mitos que cercavam essa essência metafísica de bonomia do povo brasileiro. Mesmo submersas pela violência recorrente e omnipresente, essas lendas sobreviveram teimosamente no imaginário social. Até o passado recente.
Hoje, mais próximos de um “hobbesiano” estado de natureza, os brasileiros viraram-se uns contra os outros, num jogo de celebração do caos desenhado por uma elite ignorante, imbecilizada pela comodidade e preguiça de séculos de privilégios e subserviências. Elite que sequestrou o Estado brasileiro e entregou-o de vez nas mãos de quem vive de rendimentos, pregadores de uma vulgata da já nefasta Escola de Chicago, e nas mãos dos milicianos e fundamentalistas, num simulacro bem kitsch dos já muito kitsches fasci di combattimento.
Não à toa o governo Bolsonaro é a síntese, o caldo essencial, o néctar dessa própria camada social. De um lado, um grupo de supostos técnicos ressentidos, senhores do tempo e da razão, agressivos como bons yuppies que pensam ser, personalizados na figura de Paulo Guedes, um banqueiro admirador de Pinochet, um despojo neoliberal, pária no meio académico e entre boa parte de seus pares; e, do outro, um grupo tragicómico de pessoas (também) problemáticas, vindas directamente de um mundo paralelo em que batalham contra ideologias de género, por um cristianismo armado e por parvoíces afins. Todos, de um lado e de outro, capitaneados pela figura torta de Jair Bolsonaro, um homem que representa todos os preconceitos e ódios característicos do homem médio disfuncional brasileiro.
Há dois séculos, o Brasil tornava-se uma nação independente. Há apenas oito anos, saía, finalmente, do mapa da fome da ONU. No Brasil de hoje, em que são mortos indígenas e jornalistas à luz do dia, em que se homenageiam torturadores sem o menor constrangimento, em que se promete metralhar um dos espectros políticos e uma criança de 11 anos chama a polícia por fome, como celebrar o que quer que seja? Ainda que um horizonte melhor se avizinhe e a esperança se mantenha como palavra de resistência e atitude de luta, indómita e inquebrantável, no Brasil de hoje o silêncio é omnipresente e a independência é abafada porque não há nada, absolutamente nada, para ser comemorado.