As profundas fraturas sociais do Brasil são conhecidas, mas no atual contexto de pré-campanha eleitoral vale a pena equacionar as três dimensões que podem ajudar o leitor português a compreender os paradoxos e desafios que o país enfrenta: a histórica, a socioeconómica e a política.
1. Mais de quinhentos anos após as primeiras missões de evangelização, o brutal impacto do tráfico de escravos e o sistema colonial constituíram a génese de uma elite brasileira cuja conceção imperial se estendeu até aos próprios movimentos republicanos. Após a conquista da independência, o período conturbado do império (1822-1889) traduziu-se numa intensa conflitualidade entre diferentes frações da elite impossibilitando-a de levar por diante um verdadeiro projeto nacional. O surgimento da I República foi suportado pelos setores mais conservadores do grupo dirigente, ainda ressabiados pela abolição da escravatura (1889), deixando de fora as camadas populares. Ao mesmo tempo, o fenómeno do coronelismo, associado aos grandes proprietários de terras, fortaleceu uma tendência que marcaria a política brasileira até à nova viragem promovida pelos governos de Getúlio Vargas já no século XX. Aí, a nova burguesia industrial, que se expandiu a partir dos anos vinte, incorporou o status herdado da velha exploração senhorial e cafeeira, preservando o ethos autoritário do coronelismo. É certo que a partir do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) o Brasil passou por um surto de industrialização e urbanização, que impulsionou a nação no sentido do progresso. Mas, apesar da pulsão desenvolvimentista de Getúlio em favor das novas elites empresariais, o apelo militarista continuou a marcar as ambições elitistas da classe dominante, culminando com o suicídio do presidente (1954) e mais tarde com o controlo do poder pela força (1964).
2. No plano socioeconómico, as décadas de 1970-1980 colocaram os movimentos sociais na agenda política brasileira, inclusive o novo sindicalismo onde Lula da Silva (LS) foi figura central, abrindo caminho ao fim do regime militar. A dinâmica dessas ondas de rebelião tornou-se o motor de fortalecimento da democracia, a par da agenda social que mais tarde (LS) colocaria em pauta. Já então, o espectro de um triunfo lulista contribuiu para a vitória do oportunismo, com Collor de Mello, viabilizando assim a ascensão do PSDB e de Fernando Henrique Cardoso (FHC). No entanto, após uma fase bem sucedida do seu governo, no contexto do “Plano Real”, seguiu-se uma estagnação económica a partir de finais da década de 1990, perante a elevada dívida externa e uma politica fiscal em beneficio do capital financeiro, favorecendo a subsequente instabilidade social, com o agravamento da informalidade, dos baixos salários e das desigualdades.
Esgotado o ciclo de políticas neoliberais de FHC, e independentemente dos erros que podem ser apontados aos governos do PT e a Lula, o dinamismo do movimento sindical protagonizado pela CUT/PT levou finalmente à presidência Lula da Silva (2002), com a nova liderança a prometer alavancar o Brasil para um novo rumo. Perante tal cenário, a velha elite económica entrou de novo em desespero (agora por maioria de razão). Obrigada a engolir em seco face à nova onda de entusiasmo popular com as políticas sociais do lulismo, o ressentimento cresceu. Continuando, ontem como hoje, a sentir ameaçados os seus eternos privilégios, a elite paulista sobrevoa a realidade do país nos seus helicópteros e jatinhos como que fugindo do vírus de uma “ralé” jamais “autorizada” a aproximar-se dos estilos de vida da classe média (a zona-tampão da elite). Os mais de 40 milhões de brasileiros que saíram da miséria graças aos governos lulistas acentuaram o ressentimento antipopular desses setores privilegiados. E mesmo as concessões e arranjos de L.S. com os grandes interesses económicos não apaziguaram o rancor anti-PT da elite, preconceituosa e culturalmente deficitária.
As mobilizações populares de 2013-2014 frustraram as expectativas progressistas iniciais e acabaram por ajudar ao golpismo contra Dilma Rousseff, oferecendo protagonismo a agentes do judiciário (Sérgio Moro), com isso ajudando a condenar L.S. e abrindo caminho ao populismo nacionalista que traria Bolsonaro ao poder. A experiência dos últimos quatro anos ensombrou de novo o Brasil e a sua imagem internacional. Porém, mais do que um balanço substantivo e racional das incongruências do bolsonarismo, são sobretudo a atual tendência inflacionista, a estagnação económica e a regressão salarial, com a galopante informalidade e sobretudo o novo disparar da pobreza (que já atinge mais de 33 milhões como revelou um estudo recente), os fatores decisivos para o descrédito de Bolsonaro e o provável desfecho favorável a Lula da Silva.
3. A dimensão propriamente política exprime-se hoje numa clivagem em que o campo politico-eleitoral está praticamente dividido ao meio. Vale a pena lembrar algumas nuances do sistema político brasileiro. Aqui, as ideologias diluem-se perante um regime que é presidencialista mas não nominal, ou seja, o chamado «presidencialismo de coalisão», uma regra não escrita em que a estabilidade presidencial fica largamente dependente dos acordos parlamentares que consegue alcançar. Na expressão de um professor da USP (Cícero Araújo), trata-se de uma espécie de «Câmara invisível» que, desde os tempos de FHC “se tornou informalmente uma instância paralela de acesso ao poder do Estado, tecida com toda a malha do poder oficial, e que inclui uma relação promíscua entre a representação política (em todos os níveis) e o poder econômico, especialmente o mais ligado e dependente dos recursos públicos." (in Nueva Sociedad, Nº 299 / Junho - Julho 2022). Acresce que, o ato eleitoral no Brasil envolve diversas votações em simultâneo, no caso, Presidente, deputados do Parlamento Federal, Governador do Estado, deputados estaduais e Senado. O que obriga à multiplicação de negociações entre uma infinidade de instâncias e escalas da divisão territorial, regateios e transações decididos nas cúpulas, ou seja, um manobrismo que muito contribui para o descrédito dos partidos e da democracia.
As velhas fraturas instaladas refletem-se no atual debate pré-eleitoral. Na verdade, mais do que um “debate de ideias”, trata-se de uma disputa pela hegemonia eleitoral, com um olho nas táticas e alianças e outro nas sondagens. O antagonismo dos interesses traduz-se aqui numa narrativa maniqueísta que coloca a pressão na constante diabolização do principal adversário. Perante o esvaziamento da “3ª via”, representada por Ciro Gomes (que não descola dos 7-8%), Bolsonaro e Lula mobilizam as bases e os indecisos, acusando-se um ao outro de agir com intenções satânicas contra o Brasil e o povo. Tal como na Europa, trata-se do recurso ao espectro do “medo” como arma eleitoralista.
Os grandes interesses económicos (em especial o setor do agronegócio) com a preciosa ajuda dos media, igrejas evangélicas e redes sociais, movem-se pelo arreigado sentimento anti-petista, que se traduz no vernáculo do ódio (ódio de classe) atirado não só ao PT e a Lula da Silva mas a tudo o que possa ser cunhado como de esquerda, sinónimo de socialista, comunista, etc. A racionalidade do eleitor mediano e popular praticamente esgota-se na perplexidade perante a iminente queda na miséria. Por isso, Bolsonaro tenta tomar medidas avulsas de contensão dos preços dos combustíveis (ainda que hipotecando os serviços públicos estaduais). Por isso, Lula da Silva não ocupa muito tempo a falar do futuro. Basta-lhe lembrar o sucesso dos seus primeiros governos, quando os brasileiros – em especial os pobres – viveram a sua “década dourada” de início do século XXI. Sendo a ameaça golpista um cenário latente, a esquerda e o PT vivem no dilema entre denunciar tal possibilidade ou ignorá-la e apoiar-se no passado “glorioso” para reabrir um novo ciclo promissor. Tarefa hercúlea, mas não impossível.