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27-06-2022        Público [P3]

A profusão de pets em todo o mundo, o papel dos animais domésticos na sociedade, inclusive o crescente reconhecimento dos seus direitos, refletem o estatuto que hoje ocupam junto dos humanos. Eles são, sem dúvida, uma importante fonte de afetos que contribui para a coesão de uma sociedade ameaçada de deslassamento. A presente crónica não é uma “análise”, mas apenas uma partilha de experiências, no caso, com duas cadelas bulldogs franceses.

Tudo começou com a Eva, a que primeiro nos despertou para o potencial desta espécie. Agora, até fica mal dizer isso, mas no primeiro encontro o seu ar façanhudo pareceu-nos bastante feioso e “esquisito”. No entanto, rapidamente o aspeto “feio” se começou a revelar “simpático” e se reverteu num “feio-belo”. O namoro com esta frenchie continuou quando, tomada de empréstimo, veio passar férias a Coimbra. No bairro onde resido estabeleci mais contactos através dela num mês do que em duas décadas de residência. O pessoal das várias empresas, escolas de formação, atividades diversas que aí fervilham de movimento a várias horas do dia (e até da noite) passou a beneficiar de acréscimos de motivação, momentos de escape e diversão, na saída, na entrada ou nos intervalos, com a aproximação descontraída da Eva, a saracotear o rabo como se visse em cada figura um potencial Adão. Foi esta experiência que nos levou a adotar a nossa atual “menina”: a Yoko.

Por razões que já se perceberam, esta é, no aspeto, igual à Eva. Ambas tigradas, gravata branca, embora a da Yoko mais pareça um avental. O nome deve-se em parte ao seu olhar expressivo, com traços nipónicos, que nos induziu a uma remissão, talvez nostálgica, para esses tempos áureos de John & Yoko, apesar da alegada “má influência” que esta figura feminina terá tido sobre aquela banda mítica dos sixties. Logo aos dois meses, quando chegou, sendo idêntica à sua “prima”, muitas pessoas comentaram: “mas a Eva está mais magra…”. Magra não estava, simplesmente era outra, e menor.

Há entre as duas criaturas uma diferença de idades de cerca de oito anos, ou seja, a primeira está à beira da velhice, enquanto a mais nova ainda vai na puberdade. Acresce que, fora a tonalidade do pelo, cada uma possui as suas próprias características comportamentais. Na relação com as pessoas, por exemplo, ambas são seletivas, muito dadas, mas de modo bem distinto. Enquanto a Eva se deita de imediato à primeira carícia e se põe a jeito para as festinhas na barriga, a Yoko primeiro olha fixamente para a pessoa (eles guiam-se pelo olfato e parecem adivinhar a compatibilidade química com a pessoa), depois, reage segundo a resposta que obtém. Se nota um gesto de simpatia, se falam para ela, abana o rabito e aproxima-se, por vezes em passo de corrida — quase ao estilo galope se a distância for grande — e costuma empinar-se, faz olhinhos e desafia-nos, saltitando, olhar feliz e orelhas deitadas para trás, numa agitação que pede atenção e mimo. Gera-se uma vibração de emoções que se estende do olhar fixo e curioso, aproximação e, se o magnetismo assim o ditar, excitantes lambidelas no rosto. Já na relação com outros cães e gatos as atitudes são igualmente distintas. Ao contrária da Eva, a Yoko quer simplesmente brincadeira com tudo o que mexe. Certamente também por razões de maturidade, esta brinca com qualquer objeto, sobretudo plásticos, papéis, raízes e paus, borrachas, rolhas de cortiça, chupetas, pedaços de madeira e até pedras. Mas o que mais a entusiasma são as correrias e jogos com os outros cães, ou até gatos, se estes o permitirem (o que em geral não acontece). É o caso da sua amiga de infância (a Miú), porque se conheceram ambas com três meses, afeiçoaram-se a partir de uma relação que evoluiu entre a luta, a perseguição e o jogo. Acabaram até dormindo juntas.

Infelizmente, em Portugal há ainda poucos espaços onde seja permitida a entrada de caninos (e no caso das viagens aéreas é um enorme problema). É verdade que a variedade de raças é grande e aqui o “todos diferentes, todos iguais” faz pouco sentido, dada a natureza violenta, ou ruidosa, de alguns. Qualquer uma destas duas cadelas fica tranquilamente à porta do café ou do supermercado sem reclamar. Em certos ambientes ajudam a quebrar as regras de modo espontâneo, pela simpatia que suscitam, como no caso da instituição universitária a que estou ligado. Funcionários, colegas, seguranças, estudantes, adoram a presença da Yoko (tal como no passado da Eva), que já se tornou uma autêntica mascote da instituição. Suspeito até que terão sido as correrias loucas na relva do jardim, em geral com bastante assistência estudantil em redor, que lhe provocaram o ferimento numa pata, que mais tarde obrigou a cirurgia.

Foi precisamente na sequência desse incidente que descobri a verdadeira importância que um animal destes pode adquirir nas nossas vidas. Como resultado da intervenção, sofreu de uma insuficiência renal aguda (provocada por medicação em doses inapropriadas para ela) e foi internada de urgência dias depois. Recebi a notícia no momento em que acabava de aterrar em Lisboa, depois de uma viagem em que a bagagem não chegou. O choque foi tal que este problema se tornou irrelevante comparado com a espiral de aflição que se apoderou de mim. Imaginar aquela criatura em perigo de vida, foi dramático. Sem conseguir contactar a clínica, fui tomado pela sensação de iminente perda, como se de um filho se tratasse. As horas de desespero só amainaram com a chegada (tardia) de uma mensagem apaziguadora do veterinário. Foi uma noite de insónias, a mostrar o quanto é limitativa e falsa essa ideia do “animal de companhia”, como se se tratasse de um mero objeto que serve para nos entreter. São conhecidos casos em que o animal se deixa morrer após a morte do dono, tal é a intensidade do vínculo afetivo. Ainda por cima eles não falam! Ou melhor eles até falam. Falam connosco, pedem atenção, desafiam-nos, dão-nos ternura e exprimem imensas emoções. Apenas o fazem numa outra linguagem, que os humanos nem sempre percebem (e, como sabemos, há muitos cuidadores a precisarem de ser educados…).

Em suma, muito mais do que a “companhia”, os nossos cachorros (bulldogs ou não), como no caso da Yoko, são ímanes que atraem sentimentos e fluxos de positividade, num mundo marcado pelo stress, ajudando a soltar a espontaneidade e sentido de partilha das pessoas, tantas vezes encapsuladas nos seus ritmos alienantes e clichés comportamentais.


 
 
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Elísio Estanque



 
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