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25-06-2022        Jornal de Notícias

No discurso de muitos empresários e gestores, de "especialistas" em recrutamento de trabalhadores, de alguns governantes, é contínua a utilização da palavra talento, amiúde de forma manipulada. Ela é utilizada em referência a conhecimentos e capacidades excecionais, ou em substituição do velho conceito recursos humanos, ou até para esconder situações de trabalho de baixíssima qualidade e muita exploração. Ora, em maior ou menor grau e em campos diversificados, todos os seres humanos têm talento. Uma percentagem mínima (em regra diz-se que são 3%) estará nos extremos, do muito ou do pouco. O talento, mais que uma propriedade de cariz individual, é uma característica que se revela em contextos sociais, no desenvolvimento das atividades humanas. No caso do trabalho, em contextos laborais.

Entre os principais problemas do país, da economia e do trabalho não se encontra a falta de talento dos portugueses, mas sim a ausência de condições para que ele emerja na sociedade, a falta de capacidade de o reter e de o valorizar. Hoje, Portugal precisa de não perder população com mais e menos formação, necessita de educar, de formar e qualificar os portugueses melhor que no passado (como aliás vem fazendo), e carece de rejuvenescer a sua população.

O trabalho pouco qualificado, repetitivo e precário é uma máquina de matar talentos e até de gerar enfermidades nas pessoas. Sendo esta uma das realidades do país, grande parte dos discursos de empresários sobre a "necessidade de fixar talento" tem forte dose de hipocrisia. A melhoria das qualificações e dos salários é impulsionadora da modernização das empresas, contudo, esta não acontece sem os empresários e os governos a agirem para a mudança. Temos mais de um quinto dos jovens licenciados em trabalhos de baixíssimos requisitos de qualificação e com míseros salários, porque não encontram outros. Muitos deles até se cansarem e emigrarem. Assim se desperdiçam investimento, saberes e talento.

Quando analisamos a evolução das políticas salariais ou da legislação laboral, constata-se que a maioria dos empresários pouco ou nada avançou de melhorias materiais ou motivacionais aos trabalhadores. Nas últimas décadas, a grande valorização que conseguiram oferecer-lhes foi passar a designá-los por colaboradores. Designação instrumental para a manipulação de direitos e para iludir os trabalhadores sobre as relações de poder no trabalho, descaracteriza profissões e o entendimento do trabalho como atividade humana de grande dignidade, e como campo de responsabilidades necessariamente reguladas.

A vocação para ser empresário e as práticas que cada um adota dependem das condições e regras existentes na sociedade. Quando as estatísticas mostram que 47,5% dos empresários têm formação escolar até ao Ensino Secundário completo, várias interrogações se levantam. Quantos trabalhadores altamente qualificados não entram nas empresas porque há patrões que temem confrontar-se com quem está mais bem preparado? Se, como costumam dizer, em Portugal ser empresário é difícil, o que está escondido ou é contraditório naquele dado estatístico?

O Estado não pode cobrir permanentemente todos os riscos de uma empresa. Talvez seja tempo dos empresários que alimentam a choradeira contínua dos apoios públicos deitarem mão do seu talento para modernizarem as empresas e as condições de trabalho, para ajudarem a resolver muitos dos problemas que bloqueiam o desenvolvimento do país.


 
 
pessoas
Manuel Carvalho da Silva



 
temas
estado    economia    legislação laboral    empresas