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15-06-2022        A Tarde [BR]

Citando a encantadora Professora Maria Irene Ramalho (Universidade de Coimbra), os heterónimos pessoanos são perfeitas impertinências à realidade (Shantarin, 2022). Em especial, o engenheiro-poeta-sensacionista Álvaro de Campos, o não-ele-próprio Pessoa que advertia: “Fernando Pessoa, propriamente falando, não existia”. Ele era, na essência do termo, uma máscara (persona em latim) que, entre a realidade e a representação, contestava o absurdo do vigente através da gestação de outros poetas.

Cada heterónimo possuía registros individuais de formação e interação com a sociedade de seu tempo. Eram escudos à crítica de Pessoa contra a modernidade. Tal ideia pode ser sustentada através da interação das “Teses sobre o conceito de História”, de Walter Benjamin (1940), com as“Odes Sensacionistas”, em particular o “Ultimatum” (1917), de Álvaro de Campos.

Vejamos, se para o crítico alemão a compreensão da História exige a solução do dilema do conhecimento (também histórico), em Álvaro de Campos, a verdade está na escrita do que poderia ter sido. Aportado no sensacionismo - movimento síntese de todos os movimentos modernos em que, na Vida, a sensação é a única realidade - o alter ego de Pessoa considera que a estética de “outro Mundo possível” está em contradição com a hegemonia do poder/violência.

O “escovar a História a contrapelo” (Benjamin) encontra similitude no “Ultimatum”. O manifesto - que recorre ao incisivo “Fora” - é um convite para renuncia dos “mandarins” globais (impregnados de incompetência e alardeados de corrupção). Fernando, na persona Campos, está a responsabilizá-los pela falência integral da humanidade. O que hoje entenderíamos como uma crítica contumaz ao sistema de produção social com base na mercantilização de todos os aspectos da Vida. Em outras palavras, a poesia como um contributo à crítica do Progresso - técnico, econômico e científico - em detrimento do Desenvolvimento social propriamente dito. A Europa, como alegoria do não lugar, orienta a integralidade da advertência. Ela “tem sede de que se crie, tem fome de futuro! Quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas (...)e quer o político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu povo”.

Há similaridades entre as “Teses” de Benjamin e o devir pessoano que merecem atenção. A ênfase do manifesto, “o que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o futuro”, pode ser apreendido como a realização do Novo a partir de escombros civilizatórios arremessados aos nossos pés (tal como a Tese IX). Afinal, em países perdidos entre o fulgor do passado e a insensatez do presente, o alerta de Campos é crucial para o futuro: “o que aí está não pode durar, porque não é nada”.


 
 
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Antonio Carlos Silva



 
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