No âmbito dos grandes debates promovidos pela presidência francesa do Conselho da UE, realizou-se a 3 e 4 de Maio, no Centro Georges Pompidou, o colóquio sobre OsvMuseus na Europa: os desafios para o futuro. As duas dezenas de intervenientes pronunciaram-se num horizonte marcado pelas consequências da guerra de ocupação da Ucrânia pela Rússia, a crise ambiental, as migrações, a emergência dos nacionalismos e a descolonização europeia num continente que possui 40% de todos os museus do mundo — cerca de 18.000. O debate é urgente, como o confirmam as múltiplas publicações sobre o tema, e centra-se na necessidade de conciliar a matriz ancestral dos museus com a diversidade de formatos e de missões que as comunidades e a investigação reclamam.
Como na parábola dos Chassidim relativamente ao mundo que há-de vir (informação extraída de Auréoles, in Agamben, Giorgio, La communauté qui vient, Éditions du Seuil, 1990, Paris, p. 56-57), também se pode afirmar que os museus no futuro serão como o são no presente e como o foram no passado, com a particularidade de serem diferentes.
Das múltiplas questões que o colóquio abordou, há três que, a meu ver, são prioritárias: como é que a digitalização do mundo está a interferir com os modos de produção e de recepção nos museus? Qual é o estatuto da memória hoje em dia e o seu impacto na museografia? Quais são as consequências da descolonização em curso?
Embora a digitalização do mundo não seja um processo recente, a pandemia da covid-19 veio acelerá-la e impô-la nos museus em todas as funcionalidades e muitas virtualidades: da investigação à comunicação e, de uma forma radicalmente inovadora, na criação maciça de objectos imateriais para circularem, quer nos museus tradicionais, quer impondo a necessidade de criar museus virtuais com novos e sofisticados processos museográficos. Contudo há que ter em conta várias cautelas. A primeira de todas, para a qual nos têm alertado Paul Virillo e Bruno Latour, impõe a necessidade de conter a velocidade do consumo e da circulação desenfreada do capital sob a forma do espectáculo das artes e exigir uma solução para gerir o conflito entre o direito à realização de exposições e uma contenção face ao consumismo voraz e ilimitado. Uma outra cautela pressupõe que a transformação digital não deve ser uma imposição global e uniforme, o que criaria universos paralelos e a exclusão de todos os que não dominam a literacia digital.
A relação dos museus com a memória aparece como uma equivalência ancestral. Contudo, a investigação museográfica e os estudos da memória e das migrações negam esta falsa evidência. As memórias são múltiplas, os museus não são neutrais nas memórias que constroem através das histórias que relatam e torna-se imperativo que as comunidades e saberes transdisciplinares intervenham cientificamente na co-produção da exposição das memórias múltiplas. Alguns dos aspectos mais positivos e inovadores destes estudos conduziram-nos à assunção de que a relação entre memória e história, não sendo pacífica — sendo por vezes mesmo tensa —, tem vindo a evoluir para uma convivialidade produtiva onde, por exemplo, a investigação e a exposição, a partir dos arquivos materiais, podem beneficiar dos testemunhos orais e vice-versa, contribuindo para a veracidade das histórias dos objectos e dos processos. A digitalização em tempo real a que alguns museus recorrem permite também que se produzam memórias para o futuro de modo a que o museu não seja apenas um guardador de memórias nas versões mais tradicionais. A este propósito, a exposição Slavery (2021), produzida pelo Rijksmuseum de Amesterdão, constitui um novo paradigma de investigação e de exposição.
Finalmente, tal como a literatura global nos pode oferecer uma outra visibilidade comparatista — e, com ela, uma aprendizagem nova das influências culturais, linguísticas e temáticas — e teve como consequência uma valorização global de muitas outras literaturas, também precisamos de uma museografia global - que está longe de ser um museu universal hegemónico - que estabeleça diálogos entre museus, entre visitantes e entre comunidades, reconhecendo os contextos onde os museus estão instalados e as colecções que deles fazem parte num processo de circulação das mesmas.
É um facto que o relatório sobre a restituição do património cultural africano, da autoria de Bénédicte Savoy e Felwine Sarr (2019), foi um marco decisivo para que este processo se acelerasse, não só em França, mas um pouco por todo o mundo. O processo de devolução é moroso, complexo, exigente, quer técnica, quer culturalmente, mas é irreversível. Terá o impacto da revolução coperniciana. E muitas das suas consequências são mesmo imprevisíveis. Porque se a restituição agora iniciada é um acto civilizacional, tem implicações não só nos museus como também à escala mundial.
A devolução aos beninenses das 26 obras do tesouro real de Abomey a 10 de Novembro de 2021 foi uma verdadeira festa nacional. Tratava-se do regresso do exílio de obras de culto e de memorização de um povo e de uma nação. Mas este é apenas o primeiro acto de descolonização dos museus: muitos outros se devem seguir, a partir da premissa de que a autoridade herdada da museografia europeia deve ser questionada, seja na sua epistemologia, seja na investigação, identificação e catalogação das obras das colecções, bem como na recolha das mesmas. São aspectos em revisão através de uma abordagem epistemológica rebelde que reclama o contributo do pensamento tradicional africano, chinês ou ameríndio que contextualize os objectos dos acervos e partilhe a autoridade dos conhecimentos.
Centrando-se prioritariamente nos museus europeus, o colóquio teve sempre presente a fantasmagoria dos museus não europeus e do norte da América e não europeus, nas suas heranças e nos modos como estes reclamam de uma ética que impeça a digitalização vulgarizada dos objectos dos museus da memória doados pelos familiares das vítimas, assim como os arquivos relativos aos povos e às espécies de territórios ex-colonizados que devem ser devolvidos aos Estados que são seus herdeiros, cabendo aos museus europeus as cópias digitalizadas dos mesmos.
Num tempo em que a democracia é ameaçada por um retrocesso civilizacional, em que a Europa tem de reconhecer ser um continente de imensa desigualdade, há que insistir que, apesar de tudo, o museu deve ser um espaço de liberdade, que a Europa deve ser protagonista de circulação das obras e dos processos à escala mundial e que, tal como o preconizou o historiador e linguista Johan Huizinga na sua obra Homo Ludens (1938), o conhecimento e a aprendizagem cultural e artística devem ter uma forte componente lúdica e festiva. Assim, os museus serão no futuro como o são no presente e como o foram no passado, com a particularidade de serem diferentes.