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10-05-2022        Público

No momento em que se prepara para celebrar o 20.º aniversário da restauração da sua independência, Timor-Leste acaba de realizar a sua quinta eleição presidencial. Mais uma vez, cumpriu-se o preceituado na sua Constituição, e o acto foi reconhecido pelas instâncias de observação internacionais como livre e justo. Cumpriu-se também uma tradição: foi eleito um novo Presidente, José Ramos Horta (J.R.H.) já que nenhum dos incumbentes alguma vez logrou a sua reeleição (umas vezes porque não se apresentaram a sufrágio, outra vez porque o eleitorado assim o decidiu). Parece, assim, que o sistema político se tem mostrado capaz de acompanhar as flutuações sociais e políticas do país, dando-lhes cobertura institucional. Isto não significa, porém, que esteja imune a pressões significativas, e que não esteja a passar por um momento de elevada tensão.

A eleição presidencial de 2017 foi um marco importante na vida política da jovem nação. Pela primeira vez um candidato filiado num partido político (Francisco Guterres Lu Olo era e é presidente da Fretilin) ascendeu à posição cimeira da República. Quebrou-se o princípio até então vigente (com Xanana Gusmão, J.R.H. e Taur Matan Ruak) de eleger presidentes “independentes”, sem vínculo partidário. Essa foi uma mudança com profundas implicações. É verdade que, a princípio, tal não se perspectivava com clareza. Xanana Gusmão, líder histórico da Resistência e figura dotada de uma legitimidade carismática (no sentido forte que Max Weber emprestou a esta categoria), absolutamente ímpar entre os timorenses, esteve sempre do lado vencedor das eleições presidenciais, e em 2017 emprestou o seu apoio a Lu Olo. Essa atitude surgiu na sequência de um acordo abrangente que, em 2015, uniu os então quatro partidos parlamentares no apoio a um “Governo de Convergência Nacional”, pelo qual Xanana abdicou do seu cargo de primeiro-ministro e assumiu um lugar de simples ministro, promovendo um importante quadro da Fretilin (até então na oposição) à chefia do governo. Tratou-se de um gesto integrado no processo de transferência das principais responsabilidades governativas para a Gerasaun Foun (Nova Geração).

Num plano mais geral, podemos afirmar que, no decurso dos primeiros quinze anos de independência, se verificou uma convergência – embora por vezes pontuada por momentos de tensão – entre os detentores do poder legitimado por via eleitoral e o poder carismático. O que poderia ser um problema de competição foi, na prática, resolvido pela convergência no seio das instituições democráticas. Essa situação colapsou no mandato de Lu Olo.

Realizadas que foram eleições legislativas em Junho de 2017, a Fretilin, que controlava a presidência da república, reivindicou para si, e para o seu líder (da geração de 1974-1975), a chefia do governo – e o acordo vigente foi desfeito. Lu Olo nomeou, pela primeira vez, um governo minoritário. Mas esse governo não conseguiu a investidura parlamentar. Perante uma maioria parlamentar que apoiava um governo alternativo, Lu Olo dissolveu a câmara e convocou eleições antecipadas, das quais resultou a derrota da Fretilin. No processo de composição do novo governo, Lu Olo interveio de forma inédita, recusando dar posse a quase uma dúzia de ministros do partido de Xanana que dispunha da maior bancada parlamentar. Essa crise política durou cerca de ano e meio, e quando tudo parecia indicar que Xanana iria vencer o braço de ferro, a pandemia de covid-19 baralhou o cenário, e o governo de Taur Matan Ruak foi remodelado: saiu o CNRT, entrou a Fretilin pela mão visível do Presidente da República. Pelo caminho, quer a actuação do Presidente quer a do presidente do parlamento foram postas a em causa com base em preceitos constitucionais que não teriam sido observados. No entanto, o Tribunal de Recurso agindo na sua capacidade constitucional sancionou essas decisões, e redefiniu, na prática, os poderes presidenciais bem para além do que constitucionalistas reputados consideram legítimo. Consumou-se então uma clivagem fundamental: de um lado os mecanismos formais da democracia, do outro o líder carismático afastado do inner circle do poder.

Os cinco anos de Lu Olo como Presidente foram ainda turbulentos noutros aspectos: além de três governos em três anos, assistiu-se a ataques à liberdade de imprensa (tentando legislação sobre “difamação”), a um prolongado período de “estado de emergência”, mesmo quando a pandemia mal se manifestava no país, e a elevados níveis de confronto político. Chegou-se a temer que o novo normal na cena internacional – a autocratização de regimes democráticos – estivesse a dar passos em Timor-Leste.

A derrota contundente de Lu Olo (não foi além de 38% na segunda volta) aliada ao bom resultado de José Ramos-Horta (J.R.H.), desta feita apoiado pelo CNRT de Xanana desde o primeiro turno (mais de 46%, perspectivando uma possível maioria absoluta em eleições legislativas), veio mostrar que a política de afrontamento seguida nos últimos anos não tem suporte popular. O que coloca a questão: o que irá o novo Presidente fazer?

Um dos temas da campanha foi a ideia de que, uma vez eleito, J.R.H. poderia dissolver o parlamento e convocar novamente eleições antecipadas. O resultado da eleição sugere que essa opção ditaria uma mudança significativa na relação de forças entre os diversos partidos parlamentares. No entanto, é também possível fazer emergir um governo distinto com base no actual parlamento, no qual o CNRT detém a maior bancada. Acresce que a Fretilin se prepara para realizar um congresso, no qual é possível que venha a emergir uma nova liderança – protagonizada pelo antigo primeiro-ministro Rui Maria de Araújo, que sucedeu a Xanana – apostada em renovar as opções estratégicas do partido e em enterrar o machado de guerra. Seria assim possível que J.R.H. decidisse oferecer ao parlamento existente a possibilidade de escolher um novo governo nas suas fileiras, quer em função da apresentação de um pedido de demissão do actual primeiro-ministro, quer usando o mecanismo constitucional que, nas condições ditadas pelo Tribunal, permitiria ao Presidente demitir o chefe do governo. Em breve saberemos qual a opção do novo Presidente.

Uma coisa parece certa: a política de fomentar um confronto entre um poder formalmente legitimado e outro que se baseia em mecanismos culturais fortemente enraizados resultou na perda significativa de apoio por parte dos primeiros. Insistir em ostracizar Xanana e o que ele representa resultou num fracasso eleitoral. A prazo, insistir nessa tecla tem potencial para debilitar o processo de consolidação da democracia política. Espera-se do novo Presidente uma actuação firme na defesa das condições especiais em que Timor está a construir a sua democracia. Esse processo tem de incluir a renovação das lideranças políticas, promovendo a afirmação de novos protagonistas. Mesmo que, de imediato, tal desígnio não seja alcançável por força das circunstâncias do conflito latente, não poderá ser escamoteado a médio prazo.


 
 
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Rui Feijó



 
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