Há um clássico do Herman Enciclopédia em que o Miguel Guilherme não consegue fazer avançar um calendário em papel para lá do dia 25 de abril. O sketch de humor termina com uma voz-off a anunciar “25 de abril sempre!”.
Muitas/os se lembrarão, porque víamos a mesma televisão e porque tinha piada. À letra, “25 de abril sempre” pode invocar o contrário do que propõe, estagnação em vez de democratização.
Qualquer formulação repetida muitas vezes sem história ou reflexão crítica é facilmente esvaziada de sentido.
Se comemorámos mais dias em democracia do que em ditadura, os tropeços na austeridade, nas incertezas da precariedade, nos espaços que ficaram por democratizar e nos saudosistas de um estado novo romantizado numa cantiga para embalar racistas deu um sentido muito forte ao “sempre” do abril que passou.
É hoje evidente que a democracia não está ganha. Protegê-la é aprofundá-la e isso não significa esquecer a história que nos construiu, nem defender sempre a mesma coisa.
Participei recentemente num debate numa República de estudantes em Coimbra sobre a democracia atual. Uma das preocupações colocadas foi a da escassez de momentos formais de participação.
Por um momento, a discussão centrou-se em questões técnicas eleitorais. Mas recordemos de outro tempo a história da resistência antifascista, que se fazia contra todas as impossibilidades; das lutas sociais, lembremos que a democracia acontece na rua, nos coletivos, nos debates, nas aprendizagens formais e informais e também na festa.
O sempre de abril passa por observar além das simplificações discursivas, que ignoram as alternativas, por não reconhecerem a linguagem necessária para a imaginar; das que responsabilizam os mais excluídos, reproduzindo o racismo que negam; das que substituem a luta social por resignação ou figuras medíocres metidas em capas de super-herói de trazer por casa.
No malabarismo dos nossos quotidianos, atravessados de diferentes formas pelo cansaço da austeridade, da precariedade, das desigualdades, da pandemia, do isolamento, da guerra, pode ser muito difícil fazer mais do que cumprir o dia.
E é por isso que, nas lutas sociais, não importam apenas as ideias, mas também o processo de partilha e os afetos. Sair de casa no dia 25 de abril (como no 1.º de maio) para descer uma avenida ou participar numa comemoração coletiva é mais do que lembrar abril, é renovar a energia para o continuar.
Aproveitemos os abraços enquanto pudermos voltar a fazê-lo, não deixemos de nos emocionar ao som da Grândola Vila Morena e não aceitemos a retórica austeritária da contenção. Nunca paremos de celebrar.
Dos afetos e da partilha recebemos energia para pensar fora da caixa da inevitabilidade e do mérito individual e resistir às narrativas simplistas, às acusações que não discutem, às desculpas que reproduzirmos para aceitarmos quotidianos atravessados por violências de classe, sexistas e racistas.
A democracia faz-se todos os dias, em todos lugares e em coletivo. Sempre.