Tal como acontece com os pontos cardeais norte e sul, o oriente e o ocidente são muito mais que orientações geoposicionais; são dispositivos culturais, conceitos, metáforas, que exprimem imagens positivas ou negativas, que só se entendem ao espelho umas das outras. As imagens positivas envolvem ideias de superioridade, originalidade, fascínio, harmonia, civilização, beleza, grandeza; ao passo que as imagens negativas invocam o inverso desses qualificativos. As imagens assentam em binarismos mas combinam por vezes ideias contraditórias, como, por exemplo, fascínio e horror. A construção das imagens depende sempre do ponto de partida, oriental ou ocidental, de quem a faz. A longevidade da contraposição ocidente-oriente na cultura e nas relações internacionais é de tal ordem que se transformou num arquétipo, uma espécie de inconsciente colectivo jungiano que aflora na consciência sob múltiplas formas, sempre que as circunstâncias propiciem. Talvez estejamos a entrar no período em que este arquétipo irá ser provocado a aflorar; por essa razão, a relação ocidente-oriente merece ser revisitada.
As relações entre o oriente e o ocidente remontam a mais de 4000 anos. Estão bem presentes na antiguidade grega, na Bíblia, nas Cruzadas. Fluxos de bens e de pessoas caracterizaram essas relações durante muitos séculos no espaço-tempo que mais nos interessa, a Eurásia, essa imensa massa terrestre entre o Cabo da Roca e o extremo sudeste da Península da Malásia. 92 países, sendo que a Rússia e a Turquia estão divididas entre uma parte europeia e uma asiática. As viagens portuguesas por via marítima até à Índia e depois à China e ao Japão, ao mesmo tempo que alteraram os circuitos comerciais, permitiram uma enorme ampliação dos conhecimentos. O Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia, de Garcia de Orta, editado em Goa em 1563, é um exemplo notável dessa ampliação. Nos séculos seguintes, o interconhecimento aprofundou-se e, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, dominou a curiosidade e, por vezes, a admiração recíproca. Durante todo esse tempo, os melhores tecidos, porcelanas e outros utensílios vinham da China e da Índia. Até ao início do século XIX, a China era a grande potência comercial. No século XIX, tudo começou a mudar do lado europeu. Da revolução industrial (1830s) até à Conferência de Berlim (1884-85) que procedeu à partilha de África pelas potências europeias, a Europa (então equivalente a ocidente) confirmava globalmente o seu poder político, económico e militar. Nas suas aulas de História, Hegel é o primeiro a teorizar essa superioridade como expressão da progressão do espírito da história, de oriente para ocidente. Seria no ocidente que essa progressão culminaria, simbolizada no Estado Prussiano. Diz Hegel: “A História mundial viaja de oriente para ocidente; por isso, a Europa é o fim absoluto da história, tal como a Ásia é o começo”. É nesse mesmo período que a cultura grega se separa das suas raízes africanas e asiáticas (Alexandria, Pérsia) para servir de fundação pura e exclusiva do excepcionalismo europeu. Esta leitura é ainda hoje dominante, mas tem vindo a ser crescentemente contestada.
Neste texto, refiro-me apenas a duas revisões influentes, ambas feitas do lado ocidental. Muitas outras têm vindo a ser feitas do lado oriental e estão, aliás, disponíveis em línguas acessíveis. A primeira revisão é de Edward Said na sua obra Orientalism, publicada em 1978. Said analisa aí o modo como os ocidentais têm vindo a caracterizar o oriente, salientando as diferenças, concebendo-o como um outro tão diferente quanto negativamente avaliado. Said não se propõe caracterizar o oriente, mas sim o modo como ele é caracterizado ou imaginado pela cultura e pela política ocidentais. Analisa fundamentalmente o mundo árabe e mostra como a caracterização sempre esteve ao serviço do colonialismo europeu. Os orientais são concebidos como bárbaros, primitivos, violentos, despóticos, fanáticos, culturalmente estagnados. A sua única via de redenção ou civilização é adoptarem as ideias progressistas do ocidente. Said mostra como esta narrativa diz mais a respeito dos ocidentais do que dos orientais. Por exemplo, a obsessão sobre o modo como as mulheres são tratadas no oriente é reveladora das obsessões ocidentais a esse respeito. Em tempos recentes, alguns leitores de Said têm tentado reconstruir a imagem do ocidente que emerge da preocupação em salientar tudo aquilo a que se contrapõe. Do meu ponto de vista, o mérito de Said é o de nos mostrar que ao longo da história se criaram estereótipos acerca do outro, neste caso o “oriental” ou o “árabe”, e que esses estereótipos foram utilizados para justificar a invasão, a colonização e a dominação política. Influenciado pela concepção do poder-saber de Foucault, Said mostra que a cultura funcionou muitas vezes como justificação do imperialismo. Por exemplo, a narrativa da homogeneização e demonização do outro islâmico é desconstruída por Said, ao mostrar a enorme diversidade interna do Islão.
A segunda revisão das relações oriente-ocidente tem sido feita por vários historiadores. Depois da obra monumental de Joseph Needham (Science and Civilization in China), a revisão mais importante é a de Jack Goody nos livros The Oriental, the Ancient and the Primitive, The East in the West e Renaissance. Jack Goody mostra-nos como a ideia hegeliana da História tem vindo a dominar as narrativas e concepções do ocidente e das suas relações com o oriente. Goody tenta combater os estereótipos que continuam a prevalecer, como a ideia do excepcionalismo e da originalidade ocidentais, enumerando os contributos do oriente para muito do que assumimos ser especificamente ocidental (desde a revolução científica até à revolução industrial). Enquanto Edward Said faz uma análise culturalista, Goody centra-se nos processos produtivos e nas trocas comerciais. A este nível, foi comum na Europa, a partir do século XIX, a ideia de que o desenvolvimento económico e social do ocidente contrastava fortemente com o do oriente e que havia boas razões para que tal acontecesse. Tanto Max Weber como Karl Marx, autores com ideias distintas em tantas áreas, convergiam em considerar que o ocidente tinha características únicas, originais e excepcionais, residindo nelas o enorme desenvolvimento económico e político do ocidente quando comparado com o do oriente. É importante reter que as causas da superioridade e originalidade do ocidente (e inversamente, da inferioridade do oriente) eram concebidas como dizendo respeito à essência constitutiva das respectivas sociedades, não sendo possível alterá-las. Entre as causas que justificavam o atraso do oriente, invocava-se a deficiente racionalidade (que impedia o desenvolvimento da contabilidade), a religião (que em suas versões budista e confucionista privilegiava a contemplação e não a transformação da realidade) e a família (que, por ser extensa e de múltiplos laços, impedia a mobilidade dos seus membros para actividade produtiva). Em ambos os autores está presente a ideia do despotismo oriental, formas de governo particularmente opressivas que caracterizariam tanto o império otomano como o império chinês.
Estas análises, que funcionavam como espelhos invertidos do ocidente e eram muito selectivas, tinham por referência positiva apenas alguns países da Europa e centravam-se no período da expansão colonial e da revolução industrial. Omitiam que durante séculos a Europa importara bens essenciais da Índia (algodão, seda) e da China (porcelanas). Omitiam que no séc. IX Bagdade era um dos grandes centros culturais do mundo, onde na Casa da Sabedoria, criada pela dinastia dos Abássidas, se reuniam académicos de todo o mundo, sendo aí também que se geraram as condições para que séculos mais tarde os Europeus tivessem acesso à filosofia grega traduzida para latim do árabe e do hebraico (na escola de tradutores de Toledo nos sécs. XII e XIII).
Nas leituras dominantes das relações ocidente-oriente as razões que explicam o êxito do ocidente (e o fracasso do oriente) são essencialistas e, portanto, sugerem que a história que aconteceu não poderia ter acontecido doutro modo. Não há lugar para a contingência. Como se pode imaginar, em tempos mais recentes estas leituras foram sendo desacreditadas. O desenvolvimento do Japão e depois da China e do sudoeste asiático contradizia todas as premissas das explicações convencionais. E o mesmo se passou com a questão da família extensa, quando os europeus começaram a ver o pujante pequeno comércio das suas cidades dominado por famílias asiáticas, por vezes a mesma família com negócios em vários continentes. O que antes era um obstáculo ao desenvolvimento transformava-se num facilitador do desenvolvimento.
À luz disto, duas notas se impõem. A primeira é que a história é contingente. Na longa duração histórica a direcção das relações entre o ocidente e o oriente é menos de sentido único do que de pêndulo: durante séculos dominou o oriente, desde há dois séculos domina o ocidente. Há sinais de que este domínio possa estar a chegar ao fim, já que no início da próxima década a China será o país mais desenvolvido do mundo (se nenhuma guerra, entretanto, a destruir).
A segunda nota é que, contra os factos, a explicação tradicional da inferioridade do oriente continua a dominar o imaginário popular ocidental. Torna-se, por isso, facilmente instrumentalizável politicamente. Sempre que os europeus sentem necessidade de ocidentalizar a sua imagem, orientalizam a dos países com que têm problemas, sobretudo se eles tiverem dupla pertença à Europa e à Asia, como é o caso da Turquia e da Rússia. Quando a Europa quis rejeitar a entrada da Turquia na União Europeia, orientalizou-a. Agora, a condenação legítima da invasão ilegal da Ucrânia está a legitimar a orientalização da Rússia.