Os desassossegos de Portugal são de longo e médio prazo, e só eles nos ajudam a entender o modo como damos resposta às crises de curto prazo. Durante o século XVIII, os barcos que traziam o ouro do Brasil aportavam no porto de Lisboa, mas seguiam muitas vezes para Inglaterra para que a nossa dívida soberana fosse paga. Quem quiser ver paralelos com o que se passa hoje basta substituir barcos por Internet e Inglaterra por credores sem rosto. Portugal é de longa data um país semi-periférico ou de desenvolvimento intermédio. No actual sistema mundial é muito difícil sair deste estatuto, quer para cima (promoção a país desenvolvido) quer para baixo (despromoção a país em desenvolvimento). As convulsões ou grandes transformações políticas criam oportunidades e riscos, e os países mudam de estatuto para melhor se aproveitarem as oportunidades e evitarem os riscos.
Foi assim que no pós-guerra a Itália foi promovida a país desenvolvido. Portugal, devido ao fascismo e à guerra colonial, desperdiçou essa oportunidade. O 25 de Abril e a entrada na CEE criaram para Portugal outras oportunidades e trouxeram outros riscos, e mais uma vez não aproveitámos as primeiras e não evitámos os segundos. A tentativa socialista estatizante de 1975 foi um risco enorme; os termos de integração na CEE não acautelaram nem a agricultura e a pesca portuguesas nem as relações históricas com as ex-colónias. Por outro lado, os fundo estruturais e de coesão foram desbaratados no que constitui a história mais secreta da corrupção em Portugal. O euro, combinado com a abertura da economia europeia ao mercado mundial, foi a última machadada nas aspirações portuguesas, pois tínhamos têxteis e sapatos para vender mas não aviões nem comboios de alta velocidade. Os termos da integração foram-nos sendo mais desfavoráveis, o projecto europeu foi-se desviando das vontades originais e os mercados financeiros aproveitarem-se das brechas criadas na defesa da zona euro para se lançarem na pilhagem em que são peritos, agravando as condições do país muito para além do que pode ser atribuído à nossa incúria ou incompetência.
Vivemos a hora dos grupos dominantes, cujo poder parece demasiado forte para poder ser desafiado. A democracia, que aparentemente controla o seu poder, parece sequestrada por ele. Vivemos um tempo de explosão da precariedade, obscena concentração da riqueza, empobrecimento das maiorias, e incontrolável perda do valor da força de trabalho. E se é verdade que todas as crises são políticas, não é menos verdade que não se politizam por si. A luta pela definição dos termos da crise é sempre o primeiro momento de politização e o mais adverso para os grupos sociais que mais sofrem com a crise. Os grupos sociais que produzem as crises mantêm em geral, e salvo casos raros de colapso sistémico, a capacidade de definir a crise de modo a perpetuar os seus interesses durante e depois dela. A crise só deixa de ser destrutiva na medida em que se transforme em oportunidade nova para as classes sociais que mais sofrem com ela. E, para isso, é necessário que os termos da crise sejam redefinidos de modo a libertar e credibilizar a possibilidade de resistência, o que implica luta social e política.
No nosso caso, a possibilidade da redefinição da crise é mais consistente que em outros países. Só por má fé ou derrotismo se pode dizer que a situação da economia justificava os ataques especulativos de que fomos alvo. Basta consultar as estatísticas mais recentes (Fevereiro) do Eurostat relativas à evolução da actividade económica: no período analisado, Portugal foi um dos países da UE em que mais cresceram as novas encomendas à indústria. Se há país intervencionado que tem legitimidade para exigir a renegociação e a redução da dívida, esse país é Portugal. Esta legitimidade justifica a luta mas não a faz surgir. Para isso, é necessário que os cidadãos e os partidos inconformados transformem o inconformismo em acção colectiva de desobediência financeira.