Após a publicação dos resultados das últimas eleições legislativas, do dia 30 de janeiro de 2022, um dos temas que com mais insistência tomaram conta da agenda política e mediática foi o dos eventuais efeitos perversos da maioria absoluta, o que colocaria em causa, de alguma maneira, o funcionamento regular da democracia.
É certo que a memória coletiva e institucional das experiências políticas de governos maioritários de um só partido, ou de governos de coligação, suscitam legítimas reservas. Contudo, também é aceitável admitir a hipótese contrária, de que a existência de uma maioria parlamentar legitimada pelo voto democrático possa evidenciar virtualidades ao incorporar os predicados da “humildade democrática” e do diálogo político e social. Os riscos a que todos estamos sujeitos - pandemia, crise económica e social, desigualdades, guerra - convidam a dar uma especial atenção sociológica aos mecanismos de integração social e produção da ordem social que devem acompanhar os processos democráticos de diferenciação, de conflitualidade, de contestação e de reivindicação sociais.
Para além disso, a existência da atual maioria poderá contribuir para um melhor esclarecimento ideológico do sistema partidário português e para um modelo de diálogo político e social de um governo com maioria parlamentar, mas com sensibilidade dialógica.
No que diz respeito à primeira questão, a lógica política da democracia pluralista e competitiva, onde a ação dos atores está orientada para a maximização dos ganhos políticos, poderá ter como efeito positivo o salientar das diferenças de projetos políticos e ideológicos. Neste sentido, o posicionamento diferenciador das oposições à maioria tenderá a vincar um princípio de transparência ideológica insuficientemente discutido. Talvez assim se entenda melhor como se definem os partidos que têm tido representação parlamentar e a sua eventual reconfiguração: irá o PSD assumir-se como social-democrata, conservador, neoliberal ou social-cristão? Em que sentido político prosseguirá o PCP? Qual será a “esquerda” predominante no BE? Qual o futuro do PAN e do Livre? De que liberalismos político, de costumes e de mercado ou, mesmo, libertarismos, fala a IL? Que versões do conservadorismo social, moral e liberal e da democracia-cristã encontraremos no novo CDS? E, não menos importante, que socialismo democrático prevalecerá no PS? Liberal de mercado ou de combate às desigualdades? De diálogo com a direita democrática com preocupações sociais? De diálogo com o PAN e as “esquerdas democráticas” do BE e do Livre ou “independentes”?
Quanto ao diálogo político importa ter presente os seus pré-requisitos democráticos, como sejam a teoria e a prática da separação de poderes, em que a ação governativa é fiscalizada por instâncias diversificadas em dois níveis: o do controlo político, pelo Presidente da República e Assembleia da República; e o do controlo jurisdicional de constitucionalidade e de legalidade pelo Tribunal Constitucional, tribunais e Procuradoria-Geral da República.
Há três planos do diálogo político que gostaríamos, ainda, de destacar. O primeiro decorre dos entendimentos necessários a alcançar para diferentes entidades que requerem maiorias qualificadas de dois terços, como sucede, por exemplo, com as nomeações dos juízes para o Tribunal Constitucional, presidente do Conselho Económico e Social e diversos outros órgãos. Os acordos políticos alcançados, neste plano, serão um bom indicador do diálogo político em governo de maioria. Os outros dois planos do diálogo político, e muito exigentes, dizem respeito ao relacionamento entre a maioria parlamentar e a oposição democrática.
Em primeiro lugar, a referida diferenciação e demarcação ideológica dos partidos em tempos de maioria e o óbvio aumento da confrontação e contestação política dos partidos, em sede parlamentar, e a sua tradução em conflitualidade social de carácter reivindicativo emergente dos parceiros e movimentos sociais. Contudo, para além deste expectável aumento da conflitualidade, poderemos, também, assistir ao diálogo e convergência entre todos os partidos democráticos na defesa da democracia, da Constituição, e consequente recusa dos populismos de pulsão autoritária e de exclusão social.
Em segundo lugar, exige-se aos partidos que têm como programa a diminuição das desigualdades sociais a recusa dos pronunciamentos neoliberais – como a taxa única de IRS -, não permitindo a corrosão dos serviços públicos, desenvolvendo os mecanismos redistributivos do Estado, ou seja, em última análise, uma convergência política na defesa e desenvolvimento do Estado social.
Quanto ao diálogo social o que está em causa é a centralidade que o sistema político e que o atual Governo venha a estabelecer no diálogo entre o Estado e a sociedade civil, ou seja, da valorização do princípio da negociação com os parceiros sociais e da busca de consensos através do diálogo. No programa do Governo, sem ser propriamente novidade, encontra-se o registo de um contrato político no qual o diálogo social com os parceiros sociais tem um destaque muito particular. Dele constam o retomar das formas institucionais de diálogo social na esfera económica e laboral, mas também a promoção de um diálogo visando a institucionalização de um quadro de referência político para a ação da economia social, nomeadamente, no diálogo para a produção de uma política de bem-estar social e de desenvolvimento local.
Parecem, assim, estar reunidas as condições para que o Governo, no seu relacionamento com a sociedade civil, faça uso de um constitucionalismo societal ativo, mobilizando os parceiros sociais, como escreve no seu programa, para o “reforço do diálogo social, negociação coletiva e representação de todos, a começar pelos trabalhadores e pelo sindicalismo”. Para o “diálogo com os parceiros sociais, em modelos de resolução alternativa de litígios dos conflitos laborais, na dimensão coletiva e individual (…) [, combatendo] o enfraquecimento do diálogo social e da negociação coletiva”. Para “reforçar, em diálogo com os parceiros sociais, os incentivos à mobilidade geográfica no mercado de trabalho”. E “modernizar, simplificar e agilizar os instrumentos de regulação da economia social, em estreito diálogo social com os diferentes setores que a compõem”.
O diálogo social e de promoção da economia social e a sua participação ativa na produção de políticas públicas não substituem, nem podem limitar, nem capturar o diálogo entre os partidos políticos, mas podem, sem dúvida, aprofundar a nossa vida democrática e melhorar as nossas políticas públicas.
Logo, os efeitos virtuosos ou perversos da maioria parlamentar, no próximo ciclo político em Portugal, vão depender do uso dessa maioria e da capacidade de ação e diálogo político entre os partidos: na defesa da democracia política e do Estado social; no aprofundamento do diálogo social e promoção da economia social, sem substituição do diálogo político; e no exercício cívico das liberdades no espaço público, quer na afirmação de uma imprensa plural, quer na liberdade de manifestação e contestação por parte dos cidadãos.