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11-04-2022        Público

O dramatismo e a visibilidade mediática desta guerra está a suscitar as mais variadas e contrastantes reações. Pretendo destacar neste texto dois aspetos, o primeiro salienta o lado bom (o acolhimento), o lado que evidencia a generosidade e a capacidade de empatia por parte de quem acolhe. O segundo é a necessidade de situar no passado – recente e remoto – as relações entre a Rússia e a Ucrânia para compreender o atual a invasão e a guerra, segundo um olhar diferente das habituais análises geoestratégicas.

1. O acolhimento

“O primeiro passo para mover o mundo é movermo-nos a nós próprios”, é uma máxima atribuída a Platão. Agir sem hesitação indo ao encontro de quem sofre é a forma mais genuína de solidariedade. E sobretudo quando a ação se pauta por valores humanistas universais, o acolhimento e a dádiva ganham uma carga de autenticidade e de altruísmo que apaziguam os dramas de quem recebe e aconchegam a alma de quem dá. Alguns gestos bonitos deste teor têm vindo a ocorrer em Portugal, e eles merecem destaque porque são ilustrativos do melhor que os portugueses possuem como seres humanos. Mais do que o ruído frenético de tantos opinadores, importa destacar a simplicidade destas lições de humanismo, praticadas sem aparato.

Fins de março de 2022. Elas chegaram assustadas e exaustas, vindas da sua cidade natal, agora reduzida a escombros pelos mísseis, a mando de Putin. Tão bem acolhidas que foram por uma família de Coimbra que no início pareciam não querer acreditar. Hesitantes, quase se deixaram levar por alguém que lhes prometia este mundo e o outro, sabe-se lá com que intenções. Promessas feitas na própria língua deixaram-nas quase cegas face às condições que tinham à sua frente.. Quando a esmola é grande o pobre desconfia, é caso para dizer. O estúdio é pequeno, mas o suficiente para acolher com dignidade a mãe, as duas filhas e as duas pequenas cachorras. Os proprietários abdicam do aluguer pela AirBnB para oferecer a esta família refugiada da Ucrânia o melhor conforto possível.

Compras no supermercado, um chip para poderem telefonar, comida do restaurante de que são proprietários, mas sobretudo uma ternura genuína que pude testemunhar desta empresária de um restaurante vegetariano. “São as minhas meninas”, diz ela, após apertado abraço à filha mais velha (19 anos). A cachorra aleijou-se numa pata e fomos com elas ao veterinário, que, também ele, em solidariedade com as ucranianas, nos fez um desconto especial.

Quando estavam a fazer compras numa superfície comercial, no momento do pagamento, um jovem casal português aproximou-se, perguntou se eram refugiadas da guerra. À resposta afirmativa, deixaram uma nota de 50,00€ e desapareceram, sem esperar por encómios ou agradecimentos.

São apenas pessoas normais como nós, classe média, mas desesperadas e em fuga de uma guerra ignóbil que lhes arruinou as vidas de sempre. Será necessário esperar algumas décadas para que a verdadeira análise histórica ganhe consistência e objetividade.

2. A herança soviética

Há, como sabemos, leituras muito díspares, todas elas importantes para compreender esta guerra. A visão que aqui partilho baseia-se no contacto que tive com a Ucrânia em cerca de meia dúzia de passagens pelo país (a primeira em 2005 e a última em 2018).

Numa das crónicas que então escrevi (em 2014) referia-se que a Ucrânia “entalada entre os fortes laços culturais, linguísticos e a dependência energética e económica da Rússia, de um lado, e as tentativas de aproximação à União Europeia, de outro lado, não conseguiu ainda consolidar a sua soberania face a Moscovo, apesar da independência adquirida em 1991. Perante as sucessivas pressões e chantagens por parte das redes mafiosas ao serviço das oligarquias nascidas do enriquecimento ilícito (e do saque descarado a partir dos destroços do velho Estado soviético), a economia e as instituições do país ficaram reféns de poderes obscuros e ilegítimos, muitos deles sediados na capital russa e apoiados pela máquina da ex-KGB.” Casos factuais de candidatos e dirigentes-fantoche (como Ianukovitch) fabricados pelo regime russo eram situados “num contexto onde os negócios e a política se tornaram indestrinçáveis e onde, na própria Rússia e fora dela, os inimigos de Putin foram sendo perseguidos e eliminados uns após outros. (…) Com uma economia atrofiada e o futuro das novas gerações hipotecado às mãos das oligarquias, estavam criadas as condições para a sublevação social, que irrompeu em Kiev em novembro, quando o ex-presidente, seguindo mais uma vez as ordens do Kremlin, deu o dito por não dito em relação ao acordo com a UE, e se vergou perante o ‘abraço do urso’.” (A Ucrânia e o maniqueísmo “neo-soviético”, PÚBLICO, 27/3/2014).

Em janeiro de 2015, estive na praça Maidan onde observei “as marcas dos disparos de alegados mercenários que ceifaram cerca de cem vidas num único dia”, expostos no memorial dedicado às vítimas com os respetivos nomes e fotos. Referiam-se alguns dos vestígios históricos do legado de setenta anos de regime soviético: “Ao subir no elevador até ao 13.º andar com a nossa anfitriã, senti-me num cenário próprio da era de Estaline ou Brejnev, registei fragmentos de um mundo em ruínas, recolhi opiniões dos locais que reconheciam que, à época, ‘apesar de tudo, as coisas funcionavam’ (ou pareciam funcionar). Naquele tempo a vida era mais previsível e havia menos corrupção. Porém, o outro lado da aparente segurança – isso também não foi esquecido – era o medo instalado em cada família, em cada apartamento destes mesmos prédios, porque as paredes tinham ouvidos e uma conversa que levantasse suspeitas podia resultar no desaparecimento silencioso da família inteira. Nos tempos do Gulag o terror pesava nos dias seguintes em todo o bairro, com a substituição repentina de vizinhos e nas trocas de olhares silenciados pelo medo coletivo. Ninguém dizia nada. Os testemunhos de alguns residentes mais idosos, com quem mais tarde contactei, confirmaram-no. Mas ao subir o elevador degradado, tais relatos misturam-se com a memória da literatura de Kravchenko e Soljenitsin, que nos legaram os primeiros testemunhos do que era realmente o ‘paraíso socialista’ e o mundo soviético (De Kiev a Odessa na viragem do ano, PÚBLICO, 7/1/2015).

Quando, no atual contexto, se tecem comparações entre a Rússia e a Ucrânia (por exemplo quanto à corrupção ou à presença de grupos neonazis), esquecem-se aspetos como estes, bem ilustrativos do desequilíbrio de forças nessa matéria. E não me parece que faça qualquer sentido imaginar que foi a Ucrânia que criou as oligarquias de Moscovo (ou, quem sabe, os EUA…?). Também não acredito que na equação EUA/NATO-Rússia/China tenham alguma lógica, como por vezes se pretende, deixar a Ucrânia de fora (a não ser para quem assuma que é um país descartável) ou desvalorizar o papel dos povos e das estruturas de poder de um e do outro lado da fronteira.

A dor genuína que sentimos no olhar perdido daquele gato amarelo, que permaneceu junto ao cadáver do dono nas ruas de Bucha; o abraço fraterno a uma refugiada em desespero; ou até a simples lágrima vertida face às imagens das atrocidades desta mortandade ignóbil (cujo mentor, direto e remoto, está identificado), possuem uma força humana e um potencial compreensivo dos horrores desta guerra, e das suas causas, que nenhuma teoria geoestratégica ou contabilização relativista das vítimas pode contrariar.


 
 
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Elísio Estanque



 
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