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01-03-2022        Rua Larga [n.º 56 | 2022]

A contemporaneidade parece encontrar-se num estado generalizado de anomia, ilustrado por eventos disruptivos como as alterações climáticas e a pandemia de COVID-19 – parafraseando Hamlet, “O Tempo está fora dos seus eixos”. O termo Antropoceno, formulado para caracterizar a época geológica atual - marcada indelevelmente pelas ações humanas sobre o planeta - suspende as fronteiras entre tempo geológico e humanidade. Emissões de dióxido de carbono, desastres nucleares e a extinção em massa de espécies não-humanas colocam em causa cronologias lineares, remetendo-nos para um kairós emergencial que permanentemente nos obriga a responder a sucessivas e intermináveis crises.

O Tempo está inevitavelmente colonizado por múltiplos dispositivos políticos e tecnológicos, e a crise atual é articulada através de visões e imaginários heterogéneos acerca de como construir o futuro. O projeto TROPO: Ontologias do Antropoceno em Portugal - Movimentos Sociais, Políticas Públicas e Tecnologias Emergentes, atualmente em curso no Centro de Estudos Sociais, visa mapear como distintas entidades mobilizam a crise climática para imaginar formas específicas de construir o futuro, envolvendo uma diversidade de intervenções sociopolíticas, práticas e tecnológicas no contexto português.

O Movimento de Transição, uma rede internacional criada em Totnes, Reino Unido, em 2006, visa levar a cabo transições para a sustentabilidade ao nível local, enfatizando uma abordagem colaborativa entre todos os agentes sociais e políticos, reconhecendo a importância das dimensões micropolíticas e de alterações de estilos de vida para fazer face à crise climática. Já o Roteiro para a Neutralidade Carbónica, aprovado pelo Conselho de Ministros em 2019, consiste na estratégia portuguesa para atingir a neutralidade carbónica em 2050, incluindo a total descarbonização da produção de eletricidade e do sistema de transportes urbanos. Por outro lado, a Geoengenharia diz respeito a uma série de tecnologias emergentes – como a Gestão da Radiação Solar e a Remoção de Dióxido de Carbono – que visam evitar os efeitos nefastos do aquecimento global, através por exemplo do aumento da capacidade dos oceanos enquanto sumidouros de carbono.

Estes estudos de caso consistem em múltiplas formas de imaginar e governar o futuro, reforçando o caráter profundamente político do Antropoceno e ilustrando a heterogeneidade de atores, abordagens e esferas recrutadas para fazer face à crise climática. O Tempo do Antropoceno é, nesse sentido, um dispositivo fluído, em permanente negociação, interdependente, não-linear - as intervenções do presente estão inevitavelmente indexadas aos seus potenciais impactos nos Sistemas Terrestres, incluindo a atmosfera e os oceanos; o futuro é sujeito a uma multiplicidade de intervenções sociopolíticas e tecnológicas, por sua vez articuladas com distintas “visões” e formas de conceptualizar as relações entre humanos e não-humanos; o passado reproduz-se enquanto intensidade mimética, inculcando marcas das emissões poluentes e de explosões nucleares em agenciamentos tectónicos, atmosféricos e biológicos.

O Antropoceno convida-nos a uma reflexão acerca das políticas e ontologias do Tempo. Na realidade, o Antropoceno é um conceito altamente controverso, pois naturaliza desigualdades históricas no acesso à tecnologia e combustíveis fósseis, reificando os processos de industrialização enquanto fenómeno global. De forma a salientar as desigualdades históricas e globais articuladas com a crise climática, formulações alternativas – como Capitaloceno – têm sido propostas. O Tempo do Antropoceno remete-nos para processos de aceleração de uma relação dualista e extrativista com a natureza, frequentemente associada a uma visão instrumental que reduz os não-humanos a matérias-primas. O espírito desta tecnologia moderna e extrativista, que Martin Heidegger designou como Gestell, é contraposto a abordagens que primam por uma relação simétrica, interativa e não-dualista com os não-humanos. Estas novas ontologias, articuladas com os desafios do Antropoceno, abarcam não só a ciência e tecnologia mas também a arte, subjetividade e a política.

O conceito de “tecnologias de humildade”, proposto por Sheila Jasanoff, tem vindo a ser mobilizado para reconhecer as complexidades, incertezas e invisibilidades associadas às controvérsias sociotécnicas e ao papel desempenhado pela ciência e tecnologia nas sociedades globais contemporâneas. O Antropoceno torna premente a imaginação de um “Tempo da Humildade” para além da húbris da tecnociência e governação modernas. De facto, é urgente não só o reconhecimento da interdependência entre humanos e não-humanos mas também o desenvolvimento de políticas sensíveis à multiplicidade de Tempos em emergência e conflito, mobilizando uma consciência ecológica para que possamos escutar e responder aos diversos Antropocenos em construção.


 
 
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António Carvalho



 
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