O dia de reflexão serve para sacudir da cabeça ruídos da campanha eleitoral, limar arestas da interpretação que fazemos sobre o que observamos, ultrapassar descrenças e assumir que, apesar de todas as insuficiências da democracia, os atos eleitorais continuam a ser oportunidades para influenciar os caminhos do nosso viver coletivo. Todavia, como veremos a seguir, as realidades não se alteram de um momento para o outro.
Numa entrevista ao jornal "Público", edição do dia 27, António Saraiva, presidente da CIP, reclama reformas nas áreas fiscal, da justiça e da Administração Pública (AP). Afirmando que "a carga de impostos é insustentável", que é necessário "folga orçamental que permita o alívio fiscal", e que "nestas duas legislaturas, entraram para a administração pública 60 mil pessoas" - sem dizer porquê e quantos saíram -, o entrevistado passa a colocar no centro da resolução dos problemas das empresas a "reforma do Estado", lamentando que não tenha avançado o guião que, "no Governo de Passos Coelho, chegou a existir".
Várias das suas afirmações não têm rigor, outras são erros crassos: i) segundo o Eurostat, Portugal é um dos países da União Europeia com menor percentagem de trabalhadores do setor público no emprego total; ii) no tempo de Passos Coelho não se verificou diminuição da despesa, mas sim contratação de serviços privados sem controlo de custos; iii) a maior parte das tarefas na AP (central e local) são serviços de grande densidade social, não substituíveis por meios digitais ou robots; iv) a modernização da AP é necessária, mas as novas tecnologias são onerosas, exigem formações adequadas e muitas vezes mais trabalhadores; v) a folga orçamental pode obter-se combatendo a fuga ao Fisco, criando emprego, pagando melhores salários; vi) as políticas de resposta à crise socioeconómica exigem proteção e rentabilização do emprego, nos setores privado e público, jamais um grande despedimento no Estado, seguindo, como é pedido, "corajosas terapias" das empresas privadas.
Que coragem? A que sustentou o recorde de despedimento de mulheres grávidas em tempo de pandemia e o despacho de centenas de milhares de trabalhadores precários (por conta de outrem ou por conta própria) para o desemprego ou para o limbo do "mercado de trabalho"?
Depois de insinuar que a pandemia criou laxismo nos trabalhadores, o presidente da CIP diz que "A falta de mão de obra indiferenciada é enorme, devíamos ter uma política de captação de imigração". É uma confissão "sublime", mas preocupante: afinal, a grande carência de trabalhadores é de baixo perfil profissional, e é nessa especialização que continua a aposta. Também os imigrantes, logo que podem, partem para países que pagam melhor.
António Saraiva afirma que "os salários não podem ser definidos por decreto". Tem razão, devem sê-lo por negociação coletiva. Mas foi por decretos, com o seu apoio, que se aniquilou a efetividade da negociação, se desequilibrou o sistema de relações de trabalho, se instituíram precariedades. Em 2012, por decreto, introduziram-se mecanismos que passaram a transferir, em cada ano, mais de 3 mil milhões de euros do fator trabalho para o fator capital.
Vale a pena parar para pensar e encarar a trabalheira que dá o pensar. Não queremos continuar a ser um país atrasado e a perder população, cada vez mais desigual e pobre.