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21-01-2022        Público

A esquerda está a deixar que os termos do debate eleitoral sejam definidos pela direita, e isso é um péssimo sinal.
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Nos tempos em que o ex-Presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso (F.H.C.) e eu éramos amigos, conversávamos com frequência. A conversa começava sempre na sociologia e terminava invariavelmente na política. Numa dessas conversas, no Palácio do Planalto em Brasília, porque, entretanto, o F.H.C. tinha sido eleito Presidente do Brasil, ele disse-me a certa altura: “Sabe, Boaventura, a esquerda é burra.” Achei que no caso concreto ele estava errado, mas a frase ficou na minha memória e voltou a assaltar-me agora nestes tempos de campanha eleitoral.

Pergunto-me se a esquerda, no seu conjunto, não está a ser burra. É que a esquerda está a deixar que os termos do debate eleitoral sejam definidos pela direita, e isso é um péssimo sinal. Senão vejamos. Como tem havido estabilidade e a direita sabe que isso é importante para os portugueses nesta altura de pandemia, procura conotá-la negativamente, convertendo-a em marasmo, pântano (lembram-se do Trump e do Bolsonaro?) e, se possível, recorrem ao sentido originário e negativo do nome que deram à proposta de estabilidade: a “geringonça". São ajudados nisso pelo PS, que também a descarta, invocando boas e más razões sem especificar, e pelos dirigentes do BE e do PCP que, por temor de o argumento da estabilidade jogar a favor do PS, não querem falar dela.

Como a direita não pode negar o bom desempenho de Portugal no enfrentamento da pandemia, tenta negá-lo invocando casos pontuais que fatalmente acontecem com serviços em permanente estado de stress. Ora o BE e o PCP, como temem que dizer bem do SNS (que continua a ser um dos melhores do mundo) pode dar votos ao PS, decidem salientar sobretudo as carências do SNS, no que coincidem com a direita, a qual agradece mais água para dar força ao seu moinho.

Como a direita não pode inventar altos números de desemprego ou baixos níveis de crescimento, salienta os baixos salários (no que têm razão) e compara Portugal com os países do Leste europeu, mas ninguém na esquerda lhe lembra (sobretudo o PCP) que, enquanto os países de Leste tinham, ao entrar na UE, a mão-de-obra mais qualificada da Europa e habituada a salários comunistas (muito baixos enquanto salários directos), Portugal só ao fim de 25 anos depois de entrar na UE começa a aproximar-se dos níveis de qualificação europeus.

Como a direita tem dificuldades em estigmatizar a natural simpatia do primeiro-ministro, inventa que ele está cansado por tanto tempo de governo. Ninguém na esquerda (nem sequer o PS) lhe lembra que ainda há pouco idolatravam Angela Merkel e nunca a acharam cansada, apesar de ela ter estado 16 anos no governo. Como é arriscado desconhecer o interesse dos portugueses em ter a sua companhia aérea, invoca casos isolados (ainda que lamentáveis porque mostram que a gestão capitalista desconhece outras razões que não o lucro) e ninguém na esquerda lhe lembra que, além de Lisboa, não há apenas Porto, há também Praia, Bissau, Luanda, Maputo e muitas cidades no Brasil.

Finalmente, a direita, sabendo-se fragmentada, tenta articular-se e, como acontece usualmente em política, começa pelo consenso negativo: criticar duramente o PS e levantar o fantasma da maioria absoluta do PS, apesar de saber que a hipótese é remota, como só o convicto realista Rui Rio reconhece. Por sua vez, a esquerda (com excepção do Livre e do PAN, nos dias em que este é de esquerda) aceita acriticamente o diagnóstico táctico da direita e entra no coro da crítica ao PS, sem sequer se notar como naipe distinto, e não vê que o único perigo real para ela (e para o país) não é a maioria do PS mas a maioria de direita. Como tem pejo de mencionar o que quer que de bom se fez nestes anos, o pouco que é mencionado é atribuído à valentia dos partidos que conseguiram vencer a resistência ou a má vontade do partido maioritário. A esquerda cai, assim, no engodo e organiza a campanha contra a maioria absoluta do PS e contra a transferência de votos dos seus simpatizantes para o PS, quando se está a ver que o mais provável é a transferência do BE ou PCP para o Chega ou, no caso dos jovens (pouco preocupados com o SNS ou com as pensões), para a IL, a proposta que disfarça a receita mais retrógrada e socialmente mais perigosa com o perfume da cultura yuppie.

Como a direita não tem os escrúpulos identitários e programáticos da esquerda, vai-se treinando no consenso negativo, surfando a onda. Não me surpreenderia se depois das eleições surgisse uma “geringonça” de direita.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos