Pelo seu historial, pelo aparato e ritualismo que a caracteriza, a Universidade pode considerar-se uma autêntica “catedral”. Já publiquei no passado alguns artigos de opinião em que questionei a erosão da democracia, quer enquanto sistema político quer no interior das instituições, nomeadamente no seio do ensino universitário. Mas só posso escrever este texto porque ainda vivemos em democracia. E digo ainda, não porque imagine fantasmas de regresso à ditadura no curto prazo, mas porque o atual sistema de ensino superior – e isto não é novidade, eu próprio já o escrevi – tornou-se mais um domínio onde prevalece o protocolo, a hierarquia, o cerimonial e o poder tutelar dos “padrinhos” (a começar no caloiro e a terminar no catedrático ou no próprio reitor), do que um clima caracterizado pela democracia interna, pela transparência, pelo espírito crítico e pelo ambiente fraterno. A universidade foi sacralizada desde a sua origem, enquanto a “cátedra” foi erigida em mito supremo no seio das catedrais académicas. Um mito que por vezes tem pés de barro, mas ainda assim excessivamente venerado.
Como sabemos, as carreiras do ensino superior estiveram bloqueadas durante cerca de vinte anos, ao abrigo, primeiro, de uma política de contenção de custos e de travagem no financiamento das universidades públicas, desde o início deste século; depois, dependentes de um modelo de organização e investigação científica cujas progressões, de acordo com os regulamentos e diretivas internacionais passaram (desde 2007 com o RJIES, na linha do chamado modelo de Bolonha) a obedecer a critérios de avaliação por agências independentes na base de métricas e indexações nas quais se generalizou e se impôs, em todas as áreas académicas, o padrão das ciências duras, o que distorceu e prejudicou em particular as ciências sociais e humanas. Tudo isto para que, designadamente em domínios académicos com menos lastro histórico no nosso país, isto é, nas áreas em fase de crescimento como era o caso da Sociologia, o bloqueio das progressões se traduzisse num autêntico garrote, em que, perante o aumento da pressão do ingresso de estudantes nas licenciaturas, a atividade docente vivesse cada vez mais dos assistentes e novos professores auxiliares que iam chegando, e aí ficavam estagnados durante décadas. Hoje, isso estende-se aos docentes contratados em regime precário e sem reais perspetivas de carreira.
Convém, entretanto, lembrar que no ensino superior sempre houve avaliações regulares em provas de mérito absoluto, incluindo a atual avaliação de desempenho na administração pública ou mesmo o acesso ao vínculo de “nomeação definitiva”, cujos critérios passaram nas últimas décadas a incluir diversos itens científicos e pedagógicos anuais, ligados a publicações, investigação e avaliações pedagógicas pelos estudantes. Os resultados podem ser de “excelência”, mas as oportunidades de subida estagnaram à sombra do poder de quem chegou primeiro. Em suma, o percurso nos diferentes graus académicos – licenciatura, mestrado, doutoramento, agregação – e a evolução paulatina na experiência letiva e científica foram divergindo cada vez mais, nas últimas três décadas, das progressões nas categorias profissionais – assistente estagiário, assistente, professor auxiliar, professor associado e professor catedrático –, gerando assim um afunilamento em que o gargalo se aperta e bloqueia à medida que se avança em direção ao topo. Tudo isto ocorre, importa sublinhar, numa sociedade em que os títulos académicos e a atitude reverencial perante o “doutor” são reflexo de relações de poder de tipo paroquial que ainda persistem no nosso país, e que vêm corroendo o ambiente colegial e o espírito de abertura, tolerância e debate científico e cultural que caracterizaram o mundo académico no passado.
Pelo contrário, o atual modelo de gestão favorece a concentração do poder no diretor da faculdade e, em muitos departamentos, na figura do catedrático, que muitas vezes é um único. Quando este é um verdadeiro líder e um exemplo científico é possível estimular a participação e preservar o saudável ambiente democrático. Mas isso tornou-se uma raridade. O congelamento das carreiras de muitos foi um pretexto que deu muito jeito a alguns, poucos, que assim monopolizaram influência e poder. Há inúmeras situações em que o rácio entre o conjunto dos professores do quadro versus as categorias de associados e catedráticos, previsto na lei (e cujo limite se estabelece em 60 por cento destas duas categorias), está longe de ser cumprido. Mais: no atual contexto, quando o Governo legislou no sentido da abertura de concursos internos para dar oportunidade a alguns quadros que permaneceram estagnados devido ao referido “garrote”, há universidades que recusam esse tipo de concursos para o lugar de catedrático, mantendo-o apenas no acesso a lugares de professor associado. Se tal opção pode fazer sentido onde não existam candidatos que garantam o mérito absoluto exigível, ela torna-se mera retórica “meritocrática” nos casos em que existem professores associados com carreiras longas e mérito de excelência confirmado (e que só não progrediram devido à ausência de concursos).
Assim, a dita meritocracia traduz-se, na prática, no poder despótico de catedráticos que rapidamente atingiram o topo, isto é, sem qualquer concorrência para, depois, aceitarem sem pestanejar o bloqueio das carreiras de quem estava na fila, ou aplaudindo a generalização de concursos internacionais (onde, não poucas vezes, continuaram a ser os mesmos a definir editais e critérios curriculares dos candidatos; era a isso que me referia no texto O fator ‘QI’ e a erosão silenciosa da democracia, PÚBLICO, 28/4/2021). Por outro lado, o desmesurado poder atribuído ao catedrático contrasta com o escasso reconhecimento das provas de “agregação” (as provas públicas mais elevadas, e que noutros países dão acesso quase imediato ao estatuto equivalente a catedrático), porquanto, até mesmo a participação de associados com agregação em júris de seleção para a categoria de associado ou de doutoramento é, em geral, preterida pelas reitorias em favor do estrito círculo de catedráticos.
Esta realidade pode não ser generalizável à Universidade portuguesa no seu conjunto. Mas ela é uma das razões que ajudam a explicar não só a desmotivação de muitos professores e investigadores, mas também a estagnação e o declínio que ameaçam equipas e departamentos que poderiam ter um papel bem mais decisivo nos destinos do país e das regiões onde se inserem. Em todo o caso, o valor da cátedra mede-se pelo lastro científico que deixa para o futuro, e não pelas idiossincrasias e vaidades pessoais dos seus protagonistas, pelo que, é tempo de “dessacralizar” a figura do catedrático e “secularizar” a “catedral” universitária.