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22-12-2021        Público [P3]

Miguel Sousa Tavares é, não neguemos, um escritor competente. Mas fiquemos por aqui e interrompamos a tentação do açúcar excessivo capaz de melar os justos elogios: é um escritor apenas competente. E já laureia o suficiente a si mesmo.

Não é de hoje que esbanja orgulhosamente uma persona coreografada de escriba destemido, portador de opiniões fortes vindas da personalidade de um homem da “era de ouro” do jornalismo, reclamando das proibições nos discursos e de uma suposta patrulha da fala, (sobre)vivendo da polémica, porque ela, fim em si, o satisfaz.

Julga-se, evidentemente, um iconoclasta, mas aspas demeritórias esparramadas ao longo de um texto, ironias dúbias e sarcasmo amargo não desvelam a bravura de um jornalismo questionador. Ao contrário, nada mais representam do que a bile aparentemente inesgotável de quem bebe da mesma fonte de Narciso.

Em Eu, estátua, indefesa e silenciosa, publicado no Expresso, esse retrato do autor ganha a clareza de mil sóis, numa moldura xenofóbica adornada com ornamentos de provocateur. “Mas se os ‘novos portugueses’ ainda ouvem esses ecos [ordens de matar e castigar escravos], eu não: não há chicotes nem correntes em minha casa e não oiço uivos de dor vindos da senzala dos meus escravos”. Nesta zombaria chã vemos que não existem ecos do passado esclavagista na sociedade portuguesa contemporânea porque Tavares não ouve uivos de sua — que gafe pronominal, Tavares — senzala. Diz ser seu “dever denunciar novas formas de escravatura, com novos disfarces, sem chicotes nem correntes”. No mundo, o fascismo mais abjecto recorre à liberdade, manipulando livremente termos como ditadura e escravidão para, por exemplo, sustentar campanhas grotescas antivax. Afirmemos, sem medo de errar: há muito contra ditaduras imaginadas e formas de escravidão inventadas na génese do fundamentalismo da extrema-direita ora tão fashion. Tavares não compreende isso, porque demandaria enxergar linhas abissais e observar o Outro, e estes são reflexões que não estão no espelho de alguém que quer, como ele mesmo diz, “contar a história, a verdadeira história”... “da Humanidade”. De alguém que determina o que é a “verdadeira história” (sic) e decide o que é a “Humanidade”.

Já na cave das argumentações, Tavares avança contra Mário Lúcio de Sousa desmerecendo qualidades pessoais e literárias, como o “fraco uso” da língua que — preparem-se! — “lhe deixamos como herança” (quanta generosidade colonial com Cabo Verde!). Justo Tavares, cuja última obra é, para pouco dizer, povoada com personagens de papelão, fantoches sem alma nas mãos de uma única voz — pois assim é uma obra feita pela pena narcisista. Bons autores, não os meramente competentes, precisam ouvir; e aos Narcisos não aprazem vozes que não as suas. É com o veio da xenofobia pulsando pelos parágrafos que oblitera o diálogo. “Ora, os de quem ele fala, sim, são portugueses, tal qual como eu, ele, não”. Tavares decide quem é português e quem não é — e é evidente que não se fala, cá, de nacionalidade. Tavares escolhe quem é o Outro.

Essa xenofobia soi-disante erudita é o cimento roto do passado: o que ele afirma como sendo o “bulldozer da história limpa” são as vozes dos Outros desafiando a violência (simbólica ou não) que há séculos carregam nas costas, na pele e no sangue, e revelando os ecos que não chegam às quintas de alguns. Mas não haveria como Tavares vê-los de outra forma, porque, como Caetano Veloso, magnífico criador da língua portuguesa diria, Narciso acha feio o que não é espelho.


 
 
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