O dia 18 de dezembro foi proclamado pela ONU, no ano 2000, como o Dia Internacional do Migrante. Procurou-se assim sensibilizar os governos para os fluxos das migrações, e enaltecer a vontade individual de ultrapassar dificuldade para uma vida melhor. Duas décadas depois os desafios são imensos.
Segundo o Relatório Mundial sobre Migração (Organização Internacional das Migrações), em 2020, havia no mundo cerca de 281 milhões de migrantes internacionais, o que significa que 3,6% da população mundial residia noutro país que não o de origem. Apesar dos migrantes internacionais representarem uma parcela relativamente reduzida da população mundial, a intensidade e complexidade de fluxos, processos e dinâmicas migratórias desafiam os sistemas políticos e sociais de todos os países, convertendo as migrações num fenómeno estruturante do mundo contemporâneo.
Todos os países, ainda que com intensidades distintas, são afetados pelas migrações internacionais. Os migrantes partem e chegam de todos os lugares, tornando difícil a distinção entre países de origem, de trânsito e de destino. Muitos são hoje classificados em todas essas três categorias. Por outro lado, em muitos lugares, a relevância da população migrante, atinge uma inusitada expressão global, manifesta na diversidade étnica, de línguas, credos, vestuário e comportamentos.
Portugal é um exemplo desta realidade. Tendo sido desde sempre um país de emigrantes, converteu-se também num país de imigrantes, e num país de trânsito entre o Sul e o Norte globais. Segundo o Observatório da Emigração, estima-se que em 2020 tenham saído do país 68209 portugueses. De acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em 2020, entraram em Portugal 71747 novos estrangeiros. Nesse ano residiam em Portugal 662 mil cidadãos estrangeiros, o que representa aproximadamente 6,4% da população residente. Apesar da reduzida magnitude destes números, em muitas cidades e regiões, a população estrangeira constitui um elemento relevante das paisagens humanas.
O atual panorama das migrações internacionais é marcado pelos factos de 2015, quando mais de um milhão de pessoas ultrapassaram as fronteiras externas da Europa de Schegen e caminharam em direção a Berlim. A novidade neste acontecimento residiu na forma como a Europa foi permeável à entrada de migrantes e refugiados, de forma descontrolada, mostrando a inexistência de uma política migratória concertada a nível comunitário. Também em 2018, uma caravana de milhares de migrantes sul-americanos atravessou sucessivos países em direção aos EUA, sendo barrada na fronteira por forças militares.
Estas dinâmicas migratórias revelam um dos mais significativos paradoxos das migrações contemporâneas. Num contexto de globalização, onde tudo flui quase sem constrangimentos, nomeadamente o dinheiro, as matérias, a informação e as pessoas, algumas pessoas são limitadas nas possibilidades de migrar. Circulam livremente os turistas, os migrantes qualificados e os migrantes “gold”, contudo os migrantes indiferenciados e as pessoas em mobilidades forçadas confrontam-se com enormes barreiras legais e muros que lhes impedem a mobilidade. Resulta assim paradoxal que os Estados, tendo perdido dimensões da sua soberania para forças que os transcendem, nomeadamente de cariz financeiro, reivindiquem o controlar das suas fronteiras sobre os mais vulneráveis. As fronteiras entre o Sul e o Norte globais são disso exemplo. Essas fronteiras são linhas abissais violentas, cuja transposição implica enormes riscos. Segundo a OIM, em 2021, registaram-se 4418 mortes de imigrantes, e desde 2014 foram aí contabilizadas 45427 mortes. A odisseia de chegar ao “condomínio fechado” europeu fez com que a travessia da fronteira líquida do Mediterrâneo a convertesse na mais dramática das fronteiras, com 22941 mortes de migrantes em oito anos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos não faz referência a um direito à migração. Contudo, no n.º 2 do Artigo 13º, aproxima-se desse direito quando afirma que “toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país”. Contudo, quando este “direito de saída” é considerado no âmbito das migrações, revela-se insuficiente pelo facto de não ser acompanhado pelo “direito de entrada”. Ou seja, pode haver a liberdade para sair, mas se não houver disponibilidade para receber, então este direito não é efetivado. Na prática, este direito colide com a prerrogativa soberana dos Estados determinarem quem querem receber.
Na atualidade os fluxos migratórios são potenciados pela complexidade do mundo. No discurso de tomada de posse como Secretário-Geral da ONU, em 2016, António Guterres descreveu o mundo como um lugar tenso, imprevisível, desigual e inseguro, em consequência de conflitos armados, mudanças climáticas, crescimento demográfico, urbanização imparável, insegurança alimentar e escassez de água. Todas estas circunstâncias têm consequências na vida das pessoas, determinando a decisão de permanecer no lugar de origem ou emigrar. Assim, as migrações internacionais têm-se tornado mais intensas, em particular as migrações forçadas, com origem nos países do Sul e destino nos países do Norte, criando enorme pressão sobre as fronteiras dos países que tentam “regular o direito de entrada”.
O equilíbrio destes paradoxos é dos maiores desafios que se colocam à regulação das migrações. O número de pessoas em mobilidade é crescente. Em simultâneo as fronteiras tornam-se mais densas e duras, difíceis de transpor, com o objetivo de conter a pressão migratória. O Pacto Global para a Migração Segura, Organizada e Regular, promovido pela ONU em 2018, e o Novo Pacto sobre Migração e Asilo aprovado pela União Europeia em 2020, são documentos que procuram responder a esta pressão migratória. Afirmando a intenção de minimizar os riscos para imigrantes, e promover a integração dos mesmos, esses documentos têm uma evidente função de promover abordagens colaborativas das políticas migratórias entre países, no sentido de regularem fluxos e racionalizarem processos de receção. Para além destes documentos, exigem-se outros compromissos amplos, sérios e duradouros dos poderes políticos e da sociedade civil de cada Estado. O caráter estruturante das migrações requer que, para além das respostas políticas e jurídicas, sejam dadas também respostas sociais e éticas aos homens e mulheres migrantes, bem como às sociedades de acolhimento, num compromisso coletivo de integração.