Nos próximos dias 10 e 11. às 21 e 30,dia 12, às 19h, no espaço M.OU.CO, no Porto, a Seiva Trupe apresenta um espetáculo a partir de textos de Boaventura de Sousa Santos (BSS). O sociólogo famoso, de vasta obra publicada em diversos países, o prof. em Portugal, no Brasil e nos Estados Unidos, o investigador em várias áreas, o criador e diretor emérito do reputado CES da Un. de Coimbra, com um percurso que inclui uma constante intervenção cívica em múltiplas latitudes, o desde há muito colunista do JL? Esse mesmo, que também é poeta, com livros editados em Portugal, designadamente pela Afrontamento, mas que passou a ser autor de letras de rap, mas só como tal conhecido e editado… do outro lado do Atlântico. De facto, esses textos inseridos no universo hiphop, e na ação reivindicativa e sociocultural do autor, foram compilados no livro Rap Global, lançado em 2010, e reeditado em 2019, no Brasil (onde tem outros do ‘género’, um deles prefaciado por Caetano Veloso), e só saído em Portugal em 2020, pela Apuro. Agora, vão estar em palco naqueles espetáculos, com criação musical de Fuse, encenação de Sandra Salomé, interpretações de Allex Miranda, Joel Sines, Miguel Branca, Teresa Fonseca e Costa e Carlos Fragateiro. A propósito deste Rap Global, Boaventura escreveu o que aqui antecipamos.
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Descobri o rap na década de 1990, durante as longas estadias anuais que passei nos EUA nos últimos trinta e cinco anos. Foi uma descoberta transformadora. Ao tempo, sentia que a sociologia, mesmo a sociologia crítica que eu sempre pratiquei, carecia de energia insurgente e rebelde perante o aumento da injustiça social, da concentração da riqueza, do racismo, do sexismo e da crise ambiental. De repente, dei-me conta de que o que faltava nas ciências sociais abundava no rap. A revolta, a raiva e o inconformismo perante a ideia de que não há alternativa às sociedades injustas em que vivemos estavam aí todas bem presentes. E, para mais, com qualidade estética. A partir daí comprei um leitor portátil de CDs e passei a ouvir rap diariamente durante os longos trajectos a pé de casa para a universidade e da universidade para casa.
O rap ajudou-me a acreditar que a minha insistência em continuar a produzir uma sociologia crítica não era um gesto quixotesco. O meu trabalho académico, aliás cada vez mais partilhado como os movimentos sociais, podia juntar-se à voz de tantos jovens rebeldes e inconformados, portadores de um saber sofrido, feito de vida vivida, vozes que emergiam com raiva e indignação face à injustiça e à discriminação. Além disso, faziam-no de uma forma esteticamente bela, mas não esteticizada.
Cheguei à conclusão de que os códigos linguísticos e semânticos da escrita académica são demasiado rígidos para poderem expressar toda a dimensão da raiva e indignação contra a injustiça. Parecem flexíveis apenas para aqueles que não se dispõem a testar os seus limites. Num texto científico sociológico é impossível usar o discurso contundente e as palavras fortes, consideradas fora do rap como obscenas ou inconvenientes, mas que são a marca de água das letras do rap. Resolvi, pois, escrever letra de rap, mesmo sabendo que nunca a poderia cantar. E que nenhum rapper a cantaria, porque os rappers são todos cantautores. Foi um desafio enorme. Embora eu seja quase desconhecido como poeta, mantive ao longo da minha vida a escrita poética em paralelo com a escrita científica, tendo publicado onze livros, alguns em Portugal e outros no Brasil. Mas a minha poesia foi ao longo dos anos muito diferente daquela que subjaz ao rap. Durante muitos meses, “ouvi” a poesia do rap antes de arriscar escrevê-la. Finalmente, escrevi o Rap Global e, alguns anos depois, o longo poema, “Sou um Criador/Vou curar as minhas feridas/Volto já, ambos publicados na edição do Rap Global da Editora Apuro (Porto, 2020)”.
Não escrevi a letra seguindo à risca o código do rap. Fiz uma dupla transgressão: em relação às referências culturais que dominam no rap e em relação à cultura erudita eurocêntrica que eu ia questionando mais e mais. Daí que o texto seja um palimpsesto. Está cheio de referências semi-ocultas, semi-distorcidas a poetas e filósofos consagrados. Será um autêntico puzzle tentar identificar as referências, ainda que, no final, se apresente uma lista do material reciclado usado no livro.
Este livro incentivou-me a trabalhar durante os últimos dez anos com muitos e muitas rappers em diferentes países. Alguns e algumas acabaram sendo meus alunos nas minhas aulas dos programas de doutoramento do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Tivemos então uma ideia. Durante dois anos os rappers e as poetas slam faziam resumos em rap ou em slam das minhas aulas e apresentavam-nos no início da aula seguinte. Essa colaboração pode hoje ser consultada no meu livro, Na Oficina do Sociólogo Artesão: aulas 2011-2016 (Almedina, 2020). Na parte final estão os resumos escritos por Renan Inquérito, Mossoró, Raquel Lima, Rafa Rafuagi e Aristeo Pantoja. A quem queira saber em que consiste o encontro criativo entre diferentes saberes que designo por “ecologia de saberes” recomendo o seguinte exercício. Lede, por exemplo, a minha aula sobre a linha abissal, um conceito fundamental das epistemologias do sul. Lede, em seguida, o rap de Renan Inquérito sobre a linha abissal e e segui no youtube a música que ele compôs (https://alice.ces.uc.pt/teste/imgs/backgrounds/alice-es_back-pattern.png). Eu e ele falamos de coisas diferentes? Da mesma coisa de modos diferentes? Onde está o mesmo e onde está o diferente entre as duas versões? Entendereis agora por que razão chamo palimpsesto a este livro e ecologias de saberes à epistemologia que o sustenta.
Há alguns anos atrás, uma jovem produtora cultural brasileira quis fazer uma ópera de tipo novo a partir do texto do Rap Global. Acompanhei o projecto e a construção da partitura em que a música erudita e a música popular se combinavam em sonoridades surpreendentes. O golpe de Estado contra a Presidente Dilma Rousseff em 2016 fez cancelar o projecto. Entretanto, dois criadores e produtores culturais, que há muito admiro, leram o texto e interessaram-se por ele. O Jorge Castro Guedes decidiu criar um espetáculo a partir do Rap Global e incluí-lo na programação da Seiva Trupe, uma companhia de teatro com enormes pergaminhos no teatro independente e sempre na linha da frente da inovação. Por sua vez, o Rui Spranger, um dos poucos que conhece a minha poesia há anos, quis publicá-lo na Editora Apuro do Porto, e assim se fez. O texto pertence-lhes e, a partir de agora, pertence-vos.