Há momentos na história dos países democráticos em que a democracia só pode ser resgatada por via referendária. Isso ocorre quando convergem duas condições: a distância entre representantes e representados atinge proporções muito elevadas e o que está em jogo põe em perigo o bem-estar colectivo muito para além das divisões partidárias. Penso que estas duas condições estão presentes na actual situação política do país. As medidas de austeridade e o modo como foram impostas criaram um fosso de credibilidade muito profundo entre os cidadãos e o PS. Mas, ao contrário do que se pode supor, criaram-no também em relação ao PSD pois este, não só esteve de acordo até há bem pouco tempo com as medidas, como não apresenta (e os portugueses sabem que não pode apresentar) nenhuma alternativa real. Os portugueses estão chocados não apenas com as medidas de austeridade como sobretudo com o facto de as decisões nacionais terem sido sequestradas por uma Europa, que bem na lógica neoliberal, considera que os países pobres são pobres por culpa própria e não porque foram empobrecidos num sistema de relações sistémicas que lhes foram desfavoráveis. Neste contexto, as eleições são irrelevantes e até podem ser prejudiciais quando se aprofundam as contradições da política europeia e se abre um espaço de manobra que só um governo em plenas funções pode explorar eficazmente a favor do país. Não admira que nem empresários nem trabalhadores estejam interessados em eleições.
Não é preciso ser sociólogo para prever que se se fizesse um referendo hoje, a esmagadora maioria dos portugueses seria contra a realização de eleições. Porque se vão então realizar? Primeiro, porque, na impossibilidade da realização do referendo, competiria ao Presidente da Republica assumir a vontade do país e chamar os partidos à razão. Mas, infelizmente, Cavaco Silva é mais parte do problema do que da solução. Segundo, porque uma pequena fracção da classe política, dentro do PSD, pretende não perder a oportunidade de chegar ao poder, não por mérito próprio, mas pela exploração da fragilidade e desorientação dos portugueses. Que o possa fazer impunemente e até com êxito é a prova da baixa intensidade da nossa democracia. Sempre centrada nos seus próprios interesses e com total desprezo pelos dos portugueses, esta fracção tem a seu favor os seguintes argumentos. O PS é um deserto ideológico e por isso a vulnerabilidade do líder significa a vulnerabilidade do "projecto";. É um partido sem condições para discutir a sua rendição e só a lógica do voto útil o salvará de uma catástrofe. O CDS é um catador de migalhas políticas e estará disponível para tudo, diga o que disserem os seus dirigentes. O Bloco de Esquerda cometeu o erro histórico de pensar que havia em Portugal espaço para mais um partido catalizador do voto de protesto e do ressentimento. De facto, só há espaço para um partido e esse é o PCP, que, aliás, o tem ocupado de modo exemplar. Não foi totalmente por culpa do PS que se perdeu a oportunidade histórica de criar uma verdadeira alternativa de esquerda com vocação de poder.
Os portugueses vão passar por um período em que vão ser objectos da política. Mas, como já sugerido pelas manifestações de 12 de Março, não tardará que venham a reivindicar ser, de novo, sujeitos da política.