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25-10-2021        Público

Um governo minoritário tem duas características aparentemente contraditórias. Por um lado, é um governo instável por ter de lutar anualmente para sobreviver conseguindo aprovar o Orçamento. Por outro lado, se tiver êxito, amplia a convivência democrática, na medida em, que ao ter de negociar com outros partidos, mostra na prática que em democracia é possível gerir diferenças pacificamente, evitar a demonização dos adversários e evitar a polarização de que se aproveitam as forças antidemocráticas que, no actual contexto internacional, são forças de extrema-direita e não de extrema-esquerda.

Quando o partido minoritário é de esquerda a negociação tanto pode ser com partidos à sua direita (o mais frequente na Europa) ou à sua esquerda. Neste último caso, as dificuldades de entendimento decorrem de três factores: do peso da história das divisões da esquerda, das diferenças programáticas e dos cálculos eleitorais. Por estas razões, são raros os entendimentos, mas, contraditoriamente, quando ocorrem e são levados a cabo de boa-fé, tendem a ter êxito. O êxito consiste na ampliação das políticas sociais de apoio às classes socialmente vulnerabilizadas e na travagem das forças políticas de direita que, quando regressam ao poder depois de alguma ausência, tendem a fazê-lo com algum espírito de revanchismo ideológico que se traduz em linguagem estigmatizadora dos adversários para poder impor as habituais políticas excludentes, promotoras de desigualdade e da discriminação.

Neste quadro, ainda que de modos diferentes, Portugal e a Espanha representam na Europa uma experiência inovadora. Em Portugal, desde 2016 e em Espanha desde 2020, os governos de esquerda, liderados pelos partidos socialistas, assentam em acordos de diferentes tipos entre dois ou mais partidos de esquerda. As diferenças entre eles são também significativas. Enquanto na Espanha o governo assenta num acordo que envolve partilha da governação com um só partido de esquerda, o Unidas-Podemos, em Portugal o acordo é mais precário, apenas de incidência parlamentar e para se manter tem de negociar com mais de um partido de esquerda, nomeadamente com o PCP e o BE.  A especificidade maior do nosso caso consiste em que, no contexto europeu, Portugal é o único país em que existem dois partidos à esquerda do PS com significativo peso parlamentar. Ao contrário, na Espanha, o Unidas-Podemos representa a fusão dos dois partidos de esquerda que agora disputam em Portugal com o PS a continuidade do governo de esquerda.

As dificuldades actuais na viabilização do próximo Orçamento têm várias causas e levantam questões importantes para o futuro da democracia do país. Em primeiro lugar, paradoxalmente, elas decorrem, não do fracasso, mas do êxito do Governo na condução do país durante a crise pandémica. Segundo o respeitado New York Times de 1 de Outubro, Portugal tem tido, a nível mundial, uma das melhores gestões políticas da actual crise pandémica e precisamente por ter evitado politizar a crise pandémica. Na minha opinião, convergiram para isso três factores principais: um primeiro-ministro com uma qualidade política muito acima da média europeia; a oposição de direita conduzida por um líder com forte sentido de Estado e percepção da situação de emergência (o primeiro Rui Rio); um Presidente da República, com qualidade política igualmente muito acima da média europeia, que viu muito cedo que sem coesão política não haveria coesão social num momento de tanto perigo. São três factores favoráveis e de algum modo são eles agora os responsáveis pelas actuais dificuldades. Os perigos que da sua resolução resultarem podem vir a desfazer muito do que se conseguiu nestes anos.

Em primeiro lugar, o partido do Governo, o PS, pode ser tentado a rentabilizar o seu êxito para em eleições antecipadas vir a conquistar a maioria absoluta. Esta tentação é sobretudo grande nas tendências mais à direita dentro do partido que nunca concordaram com entendimentos à esquerda. Estão ansiosos por voltar a entendimentos “sempre mais fáceis” com a direita. O perigo está em que esta tentação é uma manifestação de arrogância que pode alienar eleitores. Além disso, o PS sabe por experiência que o tempo das maiorias absolutas passou e que os governos maioritários nem são sequer mais estáveis porque as divisões internas acabam por ocupar o lugar das divisões externas.

Mas, por outro lado, para estar à altura do momento, o PS tem de fazer concessões reais à esquerda, tem de aproveitar o crédito político que tem hoje na Europa para ir contra a ortodoxia neoliberal que está agora entrincheirada no banco central e nos ministros das Finanças, depois de ter perdido toda a credibilidade durante a crise pandémica.

Por sua vez, a oposição à direita espreita a oportunidade e para isso pode estar em vias de mudanças que não auguram nada de bom para a convivência democrática. Em vez de estabelecer um cordão sanitário à volta da extrema-direita, procura seduzir os seus eleitores com a intenção vã de a esvaziar politicamente. Desde há algum tempo, os líderes actuais e potenciais da direita têm vindo a usar uma linguagem demonizadora do adversário à esquerda que visa polarizar a sociedade portuguesa para além do que é admissível neste momento, que continua a ser um momento de perigo.

Em terceiro lugar, o Presidente da República talvez se sinta mais só do que nunca, porque vê com grande lucidez os perigos que se avizinham, se as oportunidades que estão em aberto não forem bem aproveitadas. E sabe que sem estabilidade política não o serão.

Por fim, os partidos à esquerda estão numa situação dilemática. Sabem que, se não chegarem a um entendimento com o PS, haverá eleições antecipadas e qualquer dos resultados possíveis lhes será adverso. Se o PS tiver a maioria absoluta, estarão reduzidos à irrelevância sobretudo por terem deixado escapar a oportunidade de serem relevantes para a boa governação de esquerda. Se o PS perder e a direita assumir o poder, a maioria dos portugueses não perdoará a estes partidos o terem sido responsáveis pelo regresso da direita. Por mais que façam é assim que a opinião pública entenderá o fracasso das negociações sobretudo porque os portugueses ainda estão bem lembrados de 2011 e da tragédia social por que o país passou nos anos de Passos Coelho, com sequelas que duram até hoje, um passivo social que, aliás, o PS devia saldar com muito mais ousadia do que a que tem revelado.

Mas talvez o mais intrigante e desgastante para o PCP e para o BE seja o facto de que, nas actuais negociações do Orçamento, não se ver muito bem as diferenças entre eles. Ambos incidem sobretudo no SNS e nas leis laborais. Mas, se assim é, porque é que não se entendem e fazem frente comum como aconteceu em Espanha? Dão a ideia que estão a actuar por estrito cálculo eleitoral. Isto é legítimo em democracia, mas ao mesmo tempo mostra aos portugueses que talvez não haja necessidade de ter dois partidos à esquerda do PS com o mesmo tipo de comportamento e sempre mais confortáveis na oposição contra a direita do que na construção de políticas de esquerda. Não é preciso ser sociólogo para prever qual dos dois partidos desaparecerá a curto ou a médio prazo.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos