Com o início pleno do ano letivo no Ensino Superior em Portugal inicia-se o que, em latim medieval, se designava por peregrinatio academica que designava a migração de estudantes e professores em direção aos locais onde poderiam obter conhecimento. Durante séculos esta migração trouxe, para Coimbra, com regularidade, mestres e aprendizes de todo o mundo. Habituámo-nos a ver a cidade rejuvenescer no Outono, com novos rostos, uma esperança renovada no futuro e uma alegria própria de quem se prepara para descobrir um novo mundo. A Primavera da ciência tinha, até agora, lugar e espaço no Outono Coimbrão. Durante séculos era mesmo só para Coimbra a peregrinatio académica do mundo que falava português. De uma universidade lusófona monopolista passámos a um expressivo número de universidades na lusofonia. Durante séculos foi uma migração elitista, masculina e excludente (tão exclusiva que nela só cabiam homens brancos de boas famílias). Hoje, felizmente é menos elitista, já não é tão sexista, mas ainda fica muito aquém de ser suficientemente inclusiva para que todos tenham o seu lugar nesta mesa comum.
A migração de estudantes e professores era virtuosa. Com os corpos migravam ideias, hábitos, formas de ver o mundo que, no limite, mudaram o mundo. A comunicação sempre se fez face a face ou mediada por livros raros e presentes apenas nos (parcos) centros de saber existentes. Daí a importância das cidades universitárias, das suas bibliotecas, das suas salas de aula e debate. Mas tudo isso mudou nos últimos tempos. Com a digitalização do mundo, a biblioteca virtual de Alexandria está no ecrã de um qualquer smartphone. As principais revistas científicas ou as imagens da arte, que se fez e se faz, estão disponíveis em linha.
Com a pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 a peregrinação académica foi interrompida durante 18 meses e, em certos casos, o local de obtenção de conhecimento migrou da aula magna para o cubiculum (quarto). Passámos de um conhecimento transmitido do quadro preto, usando uma imagem sempre atual, para um conhecimento do ecrã, do clique, da plataforma digital. A voz deu lugar ao pixel e o debate passou a ser iniciado por um emogi em forma de mão no ar. Ao fim de 18 meses de e-learning e de e-teaching (ou vice-versa) muitas disciplinas de vários cursos, de todos os ciclos de estudo, tornaram-se capazes de transmitir conhecimento sem a realização da peregrinatio academica. Por outro lado, se distância ao conhecimento se estreitou, o distanciamento social mostrou-nos a solidão de cada um na sua procura do conhecimento. Aos ombros de gigantes, mas cada um, sozinho, com o seu ecrã.
Se a missão do ensino superior não mudou, o metamedia, através do qual se exprime, alargou o seu espectro de ação. Passámos da sala de aula à rede global. Com alunos simultaneamente em Condeixa e em Belo Horizonte, em Mirandela e em Xangai. Todos, lado a lado, na grelha do ecrã, mas separados por milhares de quilómetros e fusos horários. Foi ao mesmo tempo estranho e desafiante. Mas o mundo académico mudou inapelavelmente nestes meses. Adaptou-se, foi resiliente, evoluiu. Gravámos aulas para quem a velocidade da Internet não permitia estar online. Criámos trabalhos de grupo reais em salas de trabalho virtuais com estudantes que não se conheciam realmente. Trabalhámos de forma síncrona e assíncrona. Não foi ótimo, não será perfeito para todas as disciplinas, não pode ser apenas assim, mas é, hoje, uma opção de ensino que importa desenvolver e aprofundar. O potencial de um novo ensino superior já se anuncia.
Agora, de volta ao ensino tradicional, sala de aula, quadro preto, alunos e professor que se enfrentam, rapidamente concluímos que o ensino do futuro já não pode ser assim. A Universidade já não cabe na sala de aula tradicional, no ensino tal como o conhecemos. Como podemos acreditar que as aulas de cátedra, em que o docente transmite a informação e o discente tira apontamentos de forma passiva (com 15 minutos para perguntas no final) ainda são possíveis no século XXI pós-covid-19? Fará ainda sentido manter as aulas em horários rígidos quando os confinamentos passados nos mostraram que a flexibilidade era muito mais funcional? Será a repetição das matérias, turma após turma, a solução ideal para rentabilizar o elevado capital humano em presença numa sala de aula? Será que podemos ignorar que no Youtube, podcasts ou moocs há toda uma universidade em paralelo disponível para os alunos que a queiram frequentar? Será a sequência aulas-exames-férias-aulas-exames-férias a solução ideal num mundo em aprendizagem contínua? E esta sequência deve ser igual no 1.º, 2.º (e fase inicial) do 3.º ciclo?
Faz ainda sentido não partilhar conteúdos em disciplinas semelhantes de diferentes cursos, faculdades ou universidades? Por vezes, uma mesma disciplina está a ser lecionada na sala 1, na sala 4 e no auditório 3.1, em simultâneo, mas por diferentes docentes. Também estará a ser lecionada em simultâneo em Coimbra, Porto Braga ou Ponta Delgada. Fará isto sentido pedagógico, científico, económico? Necessitamos mesmo de ter profissionais altamente qualificados a papaguear conteúdos que estão disponíveis no Youtube, cujos conteúdos foram objeto de tutoriais muito bem feitos ou que construíram podcasts com uma retórica comunicativa dificilmente igualável em sala de aula? Quando os professores são, simultaneamente, investigadores o que será mais importante: repetir os conhecimentos do passado ou trabalhar no conhecimento do futuro? Será que não é tempo de repensarmos o que andamos aqui a fazer ou, numa formulação alternativa, se não poderíamos fazer mais e melhor num outro contexto enquadrador?
No ano em que a peregrinatio académica move, só em Portugal, 412 mil estudantes e umas dezenas de milhar de professores na sua busca pelo conhecimento, é tempo de pensarmos em alternativas pedagógicas que levem o conhecimento em vez de nos trazerem estudantes. Pelo clima, pela produtividade científica, pelo uso sensato de recursos, importa iniciar um debate sobre a Universidade do futuro.
Desde logo, rever os Estatutos da Carreira Docente, fomentando a qualidade através de concursos sérios e não endogâmicos e terminando com a precariedade docente que ameaça tornar o ensino superior um espaço de exploração laboral sem igual. Reformar a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior que, por via da burocratização e do corporativismo é hoje um travão à mudança necessária. Ter a coragem de fundir ou extinguir cursos e mesmo Universidades ou Institutos Politécnicos. Reaprender a usar as tecnologias para que as Universidades Portuguesas e os Institutos Politécnicos possam ter impacto global. Alargar a base dos estudantes que frequentam o Ensino Superior criando espaço e tempos alternativos para que nunca seja tarde para aprender. Levar a Universidade ao mundo, desde logo onde estão os estudantes, ao Sul Global, aos campos de refugiados... Aumentar a produtividade docente e discente através do uso permanente das tecnologias. Libertar recursos escassos para mais e melhor investigação fazendo uma seleção efetiva do que importa ser investigado. Reformar a Fundação para a Ciência e Tecnologia desburocratizando projetos e processos de atribuição de bolsas e de fundos para investigação. Podemos, talvez, usar fundos europeus nesta complexa tarefa? A peregrinatio académica do futuro é de base digital, nenhum de nós tem dúvidas disso.
Temos, mesmo, é de adaptar a academia ao mundo que se constrói à nossa volta ou perderemos a oportunidade de recentrar a função da Universitatis. Talvez seja aquilo que, no jargão político, se chama de reforma estrutural e para o qual há, agora como nunca, fundos e capacidade disponível. Reformar o ensino superior é uma tarefa urgente. Sem esta reforma o país não conseguirá diminuir a distância que nos separa dos países mais avançados. Espero poder contribuir para este debate.