Passou mais de uma década desde que Tom Zé, prodígio brasileiro conhecido pela longa carreira na música, em entrevista a Jô Soares, no contexto de uma polémica nascida da opinião sobre um refrão, deu uma lição sobre música, política e desejo.
O vídeo, amplamente conhecido, é muito fácil de encontrar e vale sempre a pena lá voltar. Quem assistiu reconhecerá a dificuldade de reproduzir a genialidade da argumentação, que delicia a plateia, mas produz desconforto.
Não é o desconforto da linguagem austeritária, que passa por nos acomodarmos às possibilidades que temos para hoje, refreando expetativas sem questionar a ordem. Ao contrário, é o desconforto que vale a pena, o que amplia as possibilidades de ser e estar para além da ordem e revela a necessidade de rever a normalidade.
Cada um interpretará a conversa à sua maneira. Eu oiço o discurso como tratado sobre a colonização do desejo e uma ilustração das sobreposições, nem sempre óbvias, entre o pessoal e o político. Recupero o momento: “Todo o mundo pensa que de dó para ré, só tem dó, dó sustenido, ré. Não é verdade! De dó para ré tem nove intervalos!”. Dá-se uma interrupção na narrativa e o Tom Zé lança-se numa explicação que qualquer resumo corrompe.
Consciente de que a minha interpretação é contestável, destaco do argumento o seguinte: ao serem impostos limites no campo das possibilidades musicais, processo histórico a que a Igreja Católica não é alheia, as formas de sentir foram condicionadas e o desejo e a energia sexual limitados.
Não se trata apenas do que recusamos ou refreamos de forma consciente, mas do que não ouvimos, vemos e sentimos, porque foram apagados os mapas que revelariam esses caminhos. São desvios desconhecidos.
E é nisto que a lição me fascina, porque se liga ao tema que atravessa todos os outros, do prazer individual à justiça social: precisamos ampliar as possibilidades de imaginar, para além dos limites impostos pelas linguagens e classificações que nos impuseram.
Aquilo que tantas vezes é desvalorizado como “politicamente correto” amplia a linguagem ou os quadros de referência de forma a incluir grupos e movimentos historicamente silenciados e violentados, como mulheres, sujeitos racializados, pessoas trans. Devia ser chamado “politicamente incorreto”, porque convida a sair da zona de conforto, não para reduzir as expetativas, mas para questionar os limites impostos pela dita normalidade.
Quando falamos em reler a história europeia a partir do olhar dos sujeitos colonizados, não estamos só a falar de culpa, mas da oportunidade de ver o mundo para lá das grades do eurocentrismo. A denúncia da violência patriarcal não se esgota na questão criminal, é um passo para a libertação dos mapas impostos ao desejo e ao amor. E isso parece-me um bem comum.
Por isso, não esperem passividade face a observações com cheiro de extrema direita, sexismo ou racismo, porque há coisas maiores do que a serenidade dos convívios. Apoiar quem aceita um único tipo de sujeito, cultura, corpo, desejo, vocabulário, pensamento não é só ter uma opinião. É criminalizar quem sinaliza a estreiteza da ordem e revela um mundo maior. É reforçar a violência histórica sobre quem tem o poder de acrescentar. E isto, desde logo, é sobre direitos humanos. Mas é também sobre mim, sobre a amplitude das minhas possibilidades de existir.