Vivi esse período de forma intensa, como grande parte dos portugueses da minha geração. Assim, e porque a historia dos acontecimentos é conhecida, talvez se possa agora acrescentar conhecimento sobre o PREC e Otelo Saraiva de Carvalho, recorrendo a uma perspetiva subjetiva, vinda do seio da multidão, mas enquadrada pelo exercício de reflexão e autocritica à distância de quatro décadas.
Foi Otelo e o MFA que abriram as portas da liberdade. Mas foi ao longo daqueles meses de brasa que se seguiram ao 25 de Abril que a revolução se desencadeou. Os sonhos libertários irromperam das esquinas mais recônditas dos bairros operários, das fábricas industriais, dos amontoados de barracas onde os esgotos eram ainda a céu aberto, etc. Foi para aí que convergiram os mais diversos grupos de ativistas espontâneos, os setores sociais mais inquietos, em especial os jovens, alguns ainda sob a influência do Maio de 68 e dos movimentos estudantis da década anterior. Por detrás da linguagem polarizada da “classe contra classe” (democracia contra fascismo, ricos contra pobres ou operários contra a burguesia) ocorreu uma autêntica “fusão de classes”, quando o radicalismo de classe média rompeu com os valores pequeno-burgueses para abraçar a causa operária e popular. Uma força imparável de invenção criativa brotou dessa comunhão interclassista capaz de vislumbrar o paraíso debaixo das ruas insalubres dos bairros da periferia. Uma torrente de gente feliz, igualitária, unida em torno de projetos verdadeiramente emancipatórios como o dos “índios da Meia-Praia” (em Lagos) celebrizado pela conhecida canção do Zeca Afonso. Apesar da incipiente cultura democrática, a democracia nunca foi tão efetiva, não apenas pela mobilização coletiva mas até pelo envolvimento direto das Forças Armadas (MFA) numa dinâmica de “bottom-up”, de que é exemplo o projeto SAAL.
Essa geração de ativistas, forjada nos remoinhos daqueles “ventos do Leste” e sob o aroma dos cravos vermelhos, foi conduzida não por um efetivo projeto ou programa político, não por uma liderança carismática, mas sim pela emoção à solta. Mesmo o Otelo, estratega militar de Abril, nunca foi estratega político ou condutor de massas. As circunstâncias fizeram dele um ídolo passageiro. Milhares de vontades solidárias emergiram subitamente das catacumbas do fascismo para o esplendor luminoso de uma experiência única e redentora. A luz intensa da liberdade quase nos cegou, mas paradoxalmente conduziu-nos a uma sucessão de paisagens e vivências esplendorosas. Muitas delas não passaram de miragens que rapidamente se esfumaram. Tantas eram as certezas, tão grande era a força que nos empurrava para a ação, tão urgentes os apelos que surgiam de todos os lados, nos quartéis, nas fábricas, nas escolas e universidades, nas casas ocupadas, nos bairros pobres, nas cidades e nos campos, para cada problema ofereciam-se mil soluções.
Ainda hoje, 46 anos depois, recordo ao detalhe aquele dia 11 de março de 1975 quando, junto com outros camaradas, fomos expulsos do Regimento de Comandos da Amadora por termos reclamado um posicionamento claro daquela unidade em defesa do RALIS, ameaçado de ataque dos para-quedistas por ordem de Spínola. Após várias horas detidos no gabinete do Comando, fomos compulsivamente metidos em cima de uma viatura militar (de caixa aberta) e transportados da Amadora para o Quartel General, em S. Sebastião. Sem resquício de medo, aquele vento libertário a bater-nos nos rostos parecia abençoar a justeza das nossas convicções. Protegidos pela aura de Otelo, “exigíamos” (!) a defesa de Dinis de Almeida e do RALIS e que os Comandos travassem a tentativa de golpe.
Numa situação de normalidade teríamos sido acusados de insurreição e duramente punidos, mas naquele contexto, começámos o dia a espalhar panfletos, depois detidos, mais tarde enviados para o centro máximo de poder do Exército, e por fim reencaminhados para casa sem qualquer castigo. Deram-nos até a escolher os aquartelamentos junto da residência de cada um. Há abundantes razões para que esse dia permaneça registado ao detalhe na minha memória, tal como na história do país. No final desse dia ainda me juntei os milhares de manifestantes que, entretanto, se haviam concentrado junto ao quartel do RALIS em solidariedade. Em suma, a aventura pessoal confunde-se com as implicações políticas das movimentações militares do 11 de março.
O Verão quente de 75 começou aí. Um verão quente, longo, e que nos proporcionaria vivenciar uma avalanche de episódios a todos os títulos marcantes. Num certo sentido, deu-se aí o clímax da revolução. Sabia-se da cisão em marcha dentro das forças armadas, assim como se sabia das influências e manobras externas por parte das duas superpotências. Os portugueses retêm as imagens desse dia que anualmente nos chegam através da TV. Uma transmissão em direto, e a preto e branco, que registou esse acontecimento para a história da nossa democracia. Pode ser visto como uma metáfora eloquente de nós próprios enquanto povo. Primeiro, os perigos e os momentos de tensão, pouco depois os gestos heroicos e de confraternização entre os para-quedistas e os soldados do RALIS (que mais tarde haveriam de jurar bandeira, de punho cerrado, e “ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador”), uns e outros, abraçados e em lágrimas, após o desfecho feliz de um incidente que marcou o PREC (onde resultou uma vitima mortal, o soldado Joaquim Carvalho Luís).
Visto à distância, parece algo inusitado, um simulacro de ataque resolvido por ação de grupos populares com a moderação de militares e civis (incluindo jornalistas, onde se destacou a figura de Adelino Gomes). Enfim, um cenário que parece simbolizar a essência da alma portuguesa, forjada ao longo da história entre o estoicismo e o melodrama, a bravura e a saudade, a guerra e a poesia, a estratégia e o improviso. E é nessa mistura de atributos, entre o romantismo e o heroísmo, que se inscreve a figura de Otelo. Figura emblemática de uma revolução que alternou momentos de criatividade e improviso com bloqueios e rivalidades, que reuniu o melhor e o pior, a mais sentida comunhão com a mais descontrolada conflitualidade. O certo é que, no calor da refrega ideológica ou no auge da celebração coletiva, tudo foi conduzido sob o clamor dos grandes sentimentos. Os maiores devaneios coletivos podem toldar a consciência, mas é neles que reside a força da paixão que move a história dos Homens.
Otelo Saraiva de Carvalho personificou esse mar de contradições durante o PREC, e já sabemos que levou longe de mais o seu radicalismo ingénuo, ao ponto de embarcar num projeto politico que se perdeu nas teias da violência e que levou à sua condenação. Mas essa segunda faceta não foi um segundo Otelo. Foi o mesmo Otelo perdido nas malhas das circunstâncias onde se deixou enredar. Os seus seguidores do tempo do PREC foram-se fragmentando à medida que o horizonte de um “socialismo à portuguesa” esbarrou contra a muralha de realismo do 25 de novembro de 1975. A institucionalização da democracia desenrolou-se ao ritmo de um desenvolvimento hesitante, mas que, com a entrada na UE (então CEE), ofereceu melhores condições de vida aos portugueses. Porém, as crises recentes e a ausência de consciência cívica fizeram aumentar o ressentimento de muitos contra a democracia.
Quase meio século depois, os fantasmas do passado continuam por cá. As atitudes mais radicais anti-Otelo – mesmo na hora da sua morte – não decorrem da defesa do Estado de direito, mas principalmente por ele ter ajudado a destronar velhos privilégios e servilismos. Como lembrou recentemente um dos seus companheiros da revolução (Carlos Matos Gomes), a sua morte “revelou mais uma vez, e de forma exuberante, a existência desse Portugal ressabiado com a Liberdade e com a Responsabilidade que o 25 de Abril transferiu para a soberania popular (…)”.