Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
11-03-2011        Público

Mais do que a razão cínica, prefiro a razão social. Mais do que o moralismo, prefiro a análise sociológica. Mais do que jogar uma geração contra outra ou atribuir culpas a uma delas, importa compreender como se conjugam as forças económicas e sociais para impor rupturas e viragens nas sociedades.


Em todas as épocas da história houve lutas sociais e movimentos sóciolaborais que marcaram o processo de emancipação dos povos. A luta pelo emprego e pela dignidade das condições de trabalho foi, desde o princípio do século XIX, tão decisiva como o foram as lutas operárias pela afirmação do trabalho digno e a construção do Estado social. A novidade é que, agora, o movimento é de resistência a um processo de regressão e a acção reside, já não nos sindicatos, mas nas redes sociais do ciberespaço, que emergem pela primeira vez como a nova instância de mobilização pública (intergeracional). Será isto o prenúncio de um processo capaz de virar do avesso os agentes tradicionais da política e da vida democrática? O futuro o dirá.


A correlação entre o trabalho assalariado e a coesão social (ou a conflitualidade) está amplamente estudada. O sociólogo R. Castel ("As Metamorfoses da Questão Social";) mostrou como as tendências recentes de precarização do trabalho têm semelhanças com o "individualismo negativo"; atribuído aos pobres, despojados e vagabundos que pululavam na Europa do século XVIII; e que existe um elo causal entre o lugar ocupado na divisão do trabalho e a participação dos indivíduos nas redes de sociabilidade. No quadro de crise prolongada que se vem instalando na Europa, engrossam os contingentes de assalariados que transitam da condição de integração para a de vulnerabilidade, desta para a de desfiliação e daí por diante até à exclusão ou à simples "inexistência social"; (os clandestinos, as vítimas de tráfico humano, etc.).


O argumento "geracional"; em torno deste tema não faz sentido, pelo menos nos moldes em que é formulado. Não são os cidadãos que têm de aceitar as lógicas da economia e do mercado (e pagar a sua irracionalidade), mas sim o funcionamento destes que tem de se ajustar às necessidades dos cidadãos e do equilíbrio dinâmico da sociedade. Estes grupos de jovens, jocosamente acusados de quererem "ter a vidinha dos pais";, ou mesmo o discurso de que os actuais problemas se devem a uma suposta atracção descontrolada e insaciável pelo consumismo (por parte da geração anterior), é, além de falacioso, de um moralismo absolutamente hipócrita. Revela não só uma tentativa de desculpabilização do papel dos poderosos interesses lucrativos (dos banqueiros em particular) como uma total incompreensão das lógicas de estruturação do sistema social e das suas contradições no quadro democrático.


Os segmentos precários e escolarizados, os jovens activistas das redes sociais, que estão a dinamizar a manifestação do dia 12, podem até estar a premir um gatilho de consequências imprevisíveis. Mas, se pensarmos em realidades como: i) a falta de perspectivas dos que estão a concluir o ensino superior (onde os cortes nas bolsas são abruptos); ii) o enorme contingente de trabalhadores precários, recibos verdes, etc.; e iii) o exército crescente de desempregados (qualificados e não qualificados, jovens e menos jovens), faz sentido esperar que o impacto público será relevante. Para o bem ou para o mal, não sabemos. Isso depende não só do acontecimento em si, mas da leitura que se faça do seu significado.


Os objectivos deste protesto não são, como os moralistas de serviço afirmam, o querer eternizar "privilégios"; idênticos aos da geração passada (dos funcionários públicos, supõe-se). São apenas o justo desejo de acesso a um emprego e a luta por oportunidades mínimas de inserção social. Depois dos apelos cândidos à participação da juventude, depois de tanto serem acusados de indiferença e alienação, agora que os jovens querem dizer "presente!";, tornam-se motivo de displicência ou de sermões moralistas da parte daqueles que, na mesma idade, queriam "o impossível";. Já não estamos perante uma "geração rasca";, mas talvez perante o prenúncio de algo mais promissor. Algo que pode retomar (em novos moldes) aquilo que no Maio de 68 foi quebrado: a aliança entre a irreverência crítica da juventude estudantil e a revolta de uma força de trabalho precária, sem direitos e cansada de não ter voz.


 
 
pessoas
Elísio Estanque