Sabemos, desde o início, que a pandemia não atingiria, como não atingiu, todos os cidadãos em pé de igualdade. O discurso inicial que a catalogava de “democrática”, servia o objetivo de submeter os mais atingidos, acantonando-os nas suas desgraças e agravando a sua descrença na democracia. Foi o primeiro passo de um caminho de agravamento de desigualdades e injustiças. Daqui resultou um enfraquecimento progressivo da democracia.
As medidas de emergência e exceção chocaram, em muitos casos, com direitos e liberdades individuais e coletivas; a garantia de direitos fundamentais por parte do Estado foi posta à prova, nomeadamente na educação, na justiça, na segurança social, na saúde; há setores da economia que multiplicaram lucros, enquanto toda a reparação de prejuízos aos que foram afetados é entregue à responsabilidade do Estado; impuseram-se poderes unilaterais no trabalho que não podem ser a base da estruturação do novo normal; o enfraquecimento da participação cívica e política favorece forças e programas políticos conservadores e fascistas.
A expectativa de uma recuperação económica “imediata” depois da pandemia - por efeito de bazucas milagrosas - que faça tudo voltar ao normal, precisa de ser questionada. É perigoso criarem-se expectativas infundadas. Primeiro, o rombo foi muito grande e a sua reparação será prolongada: a recuperação tem de ser feita, por um lado, através da retoma de atividades que tínhamos, mas buscando melhores posições nas cadeias de valor, por outro lado, com reconversões que consubstanciem já respostas a transições em curso, como a climática. Segundo, a recuperação da economia pode ser lenta e apenas parcial, por compromissos com dívidas acumuladas, por ausência de estratégias empresariais e de investimento privado, por excesso de expectativa no investimento público. Terceiro, porque voltar a produzir e vender não é necessariamente o mesmo que distribuir de forma equilibrada os proveitos da produção e das vendas.
As repercussões sociais do recuo da económia ainda não se manifestaram em toda a sua gravidade, e só virão à tona quando os apoios públicos cessarem por completo e a fatura do crédito se fizer sentir. Sendo um facto que a profundidade da crise social está muito para além dos impactos diretos da crise económica é, contudo, uma ilusão considerar-se possível combater a pobreza com êxito, garantir proteção social digna, travar as desigualdades e o desemprego e evitar a emigração das gerações mais jovens, sem colocar no centro a valorização do trabalho, a melhoria dos salários e a criação de emprego mais seguro e com qualidade.
Alguns governantes, o Presidente da República e líderes patronais continuam a impingir-nos aquela ilusão. Persistem em querer deixar a democracia à porta das empresas e dos serviços públicos, em secundarizar o contributo dos sindicatos, quer na vida das empresas e da Administração Pública, quer na construção dos compromissos coletivos em que se suportam as respostas a crises profundas.
Não se admite que continuemos com um profundo desequilíbrio de poderes entre trabalhadores e patrões (ou empresários), sem negociação coletiva a funcionar com equilíbrio e dinâmica, ou com ministros que, por incompetência ou birra, não dialogam com os sindicatos.
A maior luta contra o tempo que temos pela frente é mesmo a de travar o enfraquecimento da Democracia.