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29-07-2021 Jornal de Leiria
Esta semana, conversas diferentes fizeram-me regressar a uma descoberta individual com três anos, a Hanna Gadsby, uma humorista australiana, que percebe que a política está em tudo o que fazemos e que o humor neutro é uma impossibilidade. Em “Nanette” e “Douglas”, os dois espetáculos a que assisti, o registo é pessoal e político, inteligente, divertido e emocionante.
Foram partilhas sobre o lugar apropriado para as emoções que me trouxeram à memória o momento em que Gadsby se insurge contra um tipo de observação, que algumas de nós ouvimos com frequência: “não sejas tão sensível”, uma condescendência perturbadora, passo a emoção, com inúmeras variantes.
“Não é preciso exaltares-te”, “estás a ser emocional”, “outra vez defensiva” e um bocejo continuado de indignações patriarcais contra o sentir podem, quase sempre, ser traduzidas por “conforma-te com esta invenção que definimos, de forma conveniente, como comportamento desejável”. Só mais uma expressão socialmente aceitável da história de tratamento da transgressão feminina como sintoma de perturbação mental.
De forma hilariante, Gadsby torna evidente o paradoxo dos “sensíveis à sensibilidade” e verbaliza uma convicção de que partilho, felizmente numa rede alargada: a sensibilidade é uma força, não é uma fraqueza. As emoções carregam potencial para nos salvar, precisamente porque são as emoções que permitem acreditar na transformação do que nos oprime, criar laços fortes e reunir coragem para transgredir. O velho clichê “o amor importa” é verdadeiro, mas tem muito mais expressões do que a fantasia romântica observável da janela patriarcal. Como argumenta a feminista e ativista negra bell hooks, a ética do amor (entendido numa dinâmica de crescimento espiritual partilhado, que eu interpreto como fortalecimento coletivo, sem esquecer a individualidade) esteve sempre presente nos grandes movimentos por libertação e justiça.
É claro que a negação da omnipresença das emoções e a desvalorização da sua expressão é bem mais do que um problema das mulheres. “Os homens não choram” é uma violência que ainda se repete e que os homens têm que parar de aceitar. A ciência política e a sociologia têm ganho interesse crescente pelas emoções e pelas masculinidades. Os estrategas da extrema direita perceberam muito bem que tanta lágrima contida, tanto medo recalcado, tanta dor despolitizada e ignorada na era do capitalismo desumano mascarado de tecnocracia são combustível para a produção de ódio na máquina das redes sociais. A teoria dos homens não emocionais vai por água abaixo, mas a do potencial das emoções para conduzir ao impensável ganha um registo distópico. Se a imaginação feminina foi colonizada por princesas e fantasias românticas patriarcais, violência e super-heróis de culto foi o que deram aos rapazes para sonhar.
O patriarcado e a razão moderna, que limitam a nossa imaginação, precisam ser postos em causa. Das alterações climáticas à contradição entre a desumanização continuada de grande parte da população do mundo e a concretização de fantasias bilionárias em foguetões fálicos com a duração de um recreio, são demasiados os sinais de que é preciso outra normalidade. E, nesse caminho, não devemos ignorar as emoções. Precisamos cuidá-las e fortalecer-nos coletivamente, como as feministas nos têm ensinado. É tempo dos homens também perceberem isso.
Sara Araújo
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